Por Maurílio Mendes, o Mensageiro
Publicado em 4 de janeiro de 2021
Maioria das imagens de minha autoria, setembro de 2020.
As que foram baixadas da internet – créditos mantidos sempre que impressos nas mesmas – identifico com um ‘(r)’ de ‘rede’, como visto ao lado.
Não é segredo pra ninguém que o Rio de Janeiro enfrenta, a décadas, um problema gravíssimo de segurança pública.
Estive lá em setembro de 2020 e o que vi foi uma cidade ocupada militarmente. Parecia que eu havia desembarcado por engano em Bagdá/Iraque ou Cabul/Afeganistão.
Policiais saturavam toda a Zona Sul, e também tinham presença forte no Centro (como já contei, infelizmente não pude ir ao subúrbio, então não sei como estava a situação ‘do outro lado do túnel‘).
EPIDEMIA? OS LADRÕES AGRADECEM . . .
Como chegamos nessa situação? Há vários fatores, e mesmo uma tese de mestrado seria insuficiente pra uma conclusão definitiva.
Agora, um motivo que certamente agravou foi a obrigatoriedade que todos fizessem uso de máscaras nas ruas.
Como todos sabem, no 1º semestre de 2020 veio a epidemia do corona-vírus. Eis um assunto altamente polêmico, e certamente não vamos entrar nessa discussão aqui.
O que nos importa é: com todas as pessoas tendo que cobrir o rosto, o número de assaltos aumentou muito na Zona Sul, e certamente em outras partes da cidade também.
Afinal, por motivos óbvios isso facilita bastante a ação de ladrões, que agora a menos que sejam pegos em flagrante não podem mais ser identificados por testemunhas ou filmagens.
Fora isso, o Rio vive do turismo, tem nessa uma de suas principais fontes de renda e empregos senão a principal.
Com as restrições pra viajar, esse fluxo caiu muito, quase a zero no auge que foi o outono e inverno de 2020.
Somente na primavera as coisas começaram a melhorar, e apenas começaram. Muita gente ficou desempregada.
O que certamente aumenta as fileiras dos que recorrem ao crime pra conseguir alguma renda (as causas da violência são complexas, e creio que nunca se chegará num consenso; agora, que um alto desemprego gera aumento de crimes é fato comprovado).
Tudo somado, os tiroteios entre bandidos e deles com a polícia também tiveram fortes espasmos, situação alias que é crônica a décadas.
Em julho e agosto de 2020 mesmo mais uma onda de violência chocou a cidade. Cheguei ao Rio no começo de setembro, poucos dias depois.
Em meu 2º dia lá fomos, eu e minha companheira, ao Cristo Redentor. Chamamos um motorista pelo aplicativo.
O primeiro que aceitou a corrida nunca chegava. Por três vezes o mapa indicou que ele virava a esquina da Barata Ribeiro, ou seja, já se encaminhava pro prédio que estava hospedado.
Só que não se materializava, e a seguir o carro aparecia em outro ponto de Copacabana. Quando isso aconteceu pela 3ª vez, cancelei a corrida.
Chamei outro carro. Também não veio, mas pelo menos esse motorista não ficou me enrolando, ele mesmo cancelou o serviço. Tentei ainda mais uma vez, por outro aplicativo.
Agora deu certo, ele nos apanhou no local combinado. Entretanto, assim que entramos no carro avisou que só nos levaria até a estação de trem que sobre no Corcovado, no bairro Cosme Velho.
Em condições normais é possível subir até os pés do Cristo de automóvel, dispensando assim o trem, que é caro. A estrada é particularmente bonita, vai serpenteando o morro, no meio da mata.
Só que suas encostas abrigam também algumas favelas, entre outras a de Cerro-Corá e Guararapes. E as condições não estavam nada normais.
Poucos dias antes haviam ocorridos encarniçados tiroteios nessas favelas. “O clima está bem tenso lá”, nos explicou o motorista.
“Assim não tem como subir de carro, eu pelo menos não vou. Se vocês quiserem desçam e tentem contratar outra corrida”, ele arrematou.
Como 2 outros condutores já haviam recusado, achei melhor seguir com ele até a estação do Cosme Velho e dali embarcar no trem.
Seria bem mais caro, mas ao menos garantia nosso passeio, já que certamente outros motoristas tampouco arriscariam nos levar de carro ao Cristo. Então fomos.
Só que, digamos até naturalmente nesse contexto, a conversa passou a girar em torno da violência na cidade. O motorista chegou a dizer que “se você vem ao Rio e não vê ‘tiros e explosões’ você não veio ao Rio”. Isso começou a deixar minha companheira preocupada.
Nota: evidente que problemas de segurança pública não são exclusivos do RJ. Eu e ela alias fomos assaltados alguns meses atrás na Zona Norte de Curitiba.
Até por isso já estávamos ‘cabreiros’, como se diz. E aí o motorista resolveu nos impressionar contando episódios de violência.
Minha companheira ficou receosa e perguntou se não era melhor cancelar a ida ao Cristo Redentor naquela hora e ir depois.
Oras, fomos ao Rio de Janeiro principalmente pra ela subir ao Cristo, que era seu sonho. E no dia seguinte o problema continuaria igual, de nada adiantaria adiar.
Pedi ao motorista do aplicativo que “parasse com aquele assunto”. Imediatamente ele se deu conta e mudou o tom da conversa.
Agora também o rapaz ajudava a deixá-la tranquila. Ele falava “essas coisas que eu contei aconteceram bem longe, no subúrbio. Aqui é Zona Sul, é bem seguro, a polícia protege”.
Chegamos ao Cosme Velho. Havia uma viatura parada na estação, como há viaturas paradas e rodando por todos os pontos das Zonas Sul e Central, pelo menos.
Ainda assim, o motorista nos alertou: “ali é a bilheteria. Vá direto comprar seu ingresso, não fale com ninguém”.
Como se nós não tivéssemos entendido, ele repetiu 3 vezes no curto tempo de manobrar o carro pra descermos:
“Não fale com ninguém, não peça informações, se falarem com você não responda. Vá direto a bilheteria – ah, e não use o celular na rua”.
No fim deu tudo certo. Subimos ao Cristo Redentor de trem, não presenciamos nenhum episódio negativo.
Voltando ao tema anterior, alias minha mulher reparou que no Rio pouca gente usa celular nos ônibus, enquanto aqui em Curitiba essa prática é universal. Se você andar de busão na capital paranaense irá constatar que quase 90% das pessoas estão entretidas com seus apetrechos eletrônicos.
No Rio, segundo ela apontou, é bem mais raro. Mas ressalto que andamos poucas vezes de ônibus lá, a amostragem foi pequena, não posso endossar nem refutar a observação dela.
…….
No feriado de 7 de Setembro fomos a Barra da Tijuca. Ida de metrô e novo sistema de ônibus ‘BRT‘.
Na volta pegamos um ônibus convencional, que vem margeando a orla. Ele passa perto da Rocinha e aos pés do Vidigal, duas das maiores e mais famosas favelas da orla carioca (alias a imagem acima da manchete – puxada da internet – mostra justamente uma operação militar na Rocinha, em 2017).
Em São Conrado 4 garotos de uma dessas “comunidades” invadiram o ônibus, pela porta de trás. Eram garotos mesmo, ainda crianças, por volta dos 10 anos. O motorista levantou e deu uma dura neles: “O menor, cadê a passagem?” Um dos meninos respondeu “a gente tá trabalhando”.
Pra quem não sabe, existe um acordo tácito que camelôs que vendem seus produtos no busão podem embarcar por trás sem pagar, mas precisam descer tão logo concluam o serviço.
O motorista obviamente não aceitou o ‘caô’ dos meninos, pois além deles estarem em grupo não tinham nada as mãos pra vender.
Encrespou: “Que trabalhando que nada. Vai pagar a passagem ou vai descer, qual vai ser?” Só que a seguir ele mesmo propôs um acordo: “Vai ficar na disciplina?”
Isso quer dizer que a gurizada podia viajar sem pagar, mas precisava ficar sem fazer algazarras, sem incomodar os demais passageiros – essa é a ‘disciplina’. Ele reforçou: “então, vai ficar na disciplina ou vai descer agora?”
O líder das crianças aceitou a oferta, garantindo que eles iam sim ‘ficar na disciplina‘. E assim foi, eles viajaram na paz até a Praia do Leblon.
Ali desceram, cumprindo o acordo de não perturbar o motorista e demais passageiros. Só queriam uma carona pra curtir o fim-de-tarde de feriadão nas areias da Zona Sul.
Somente o susto. Mas que foi um momento tenso é certeza. Felizmente eram crianças. Se os invasores fossem um pouco mais velhos, adultos ou mesmo adolescentes, a situação poderia ter tomado outro rumo.
Alias nem mesmo o motorista teria peitado um grupo de rapazes, temendo – com razão – primeiro por sua própria segurança.
Esse foi o único episódio de quebra de ordem que presenciei em 6 dias no Rio. Ficamos um pouco apreensivos sobre o rumo que a coisa tomaria, mas não aconteceu nada.
Bem, digo ainda mais uma vez, a cidade estava inteira tomada pela polícia, ao menos em seus bairros mais caros e no Centro. Assim estava segura.
Tudo foi tranquilo, mas foi bem tenso. É impressionante de ver a polícia oni-presente, e triste constatar que essa é a única forma de garantir um pouco de segurança pros turistas e moradores.
………..
RIO, CIDADE-DESESPERO: FICA DE OLHO ABERTO “QUE A MALANDRAGEM NÃO TEM DÓ” –
Agora estou a anos afastado da cobertura da mídia, mas por décadas (entre os anos 90 e começo dos anos 10) eu lia frequentemente jornais de várias partes do Brasil e do mundo.
Acompanhava também os periódicos cariocas. E neles eu vi diversas histórias de horror das guerras do tráfico – em menor medida também do jogo do bicho.
Relatos dignos de figurar nas reportagens das guerras do Afeganistão, Iraque, etc. Não apenas a imprensa falou disso. A arte também.
Conhece a música ‘ZeroVinteUm’ do grupo carioca ‘Planet Hemp‘?
O título é, obviamente, a forma por extenso do DDD ‘021’. Assim está evidente que a canção se propõe a ser um breve raio-X do Rio. Diz a letra:
“ Rio de Janeiro, cidade ‘hardcore‘.
Arrastão na praia não tem problema algum.
Chacina de menores, aqui é 021.
Polícia, cocaína, Comando Vermelho.
Sarajevo é brincadeira, aqui é o Rio de Janeiro. ”
………
‘Sarajevo’, não custa relembrar, é a capital da Bósnia-Herzegovina, país que se separou da Iugoslávia no começo dos anos 90. A secessão foi qualquer coisa menos pacífica; exatamente ao contrário:
Desandou numa guerra civil que foi o mais sangrento conflito bélico da Europa desde o fim da 2ª Guerra Mundial, 75 anos quando escrevo em 2020.
No começo e meio do anos 90, os jornais televisivos e impressos estavam repletos de histórias de atrocidades, matanças e bombardeios ocorridos em Sarajevo e toda Bósnia.
Ainda assim, o autor que é Marcelo D2 achou que era justo dizer que ‘Sarajevo é brincadeira, aqui é o Rio de Janeiro‘.
Querendo com isso dizer que o conflito carioca pelos pontos-de-venda de drogas é ainda mais pavoroso que a guerra que culminou na independência da Bósnia.
Na mesma linha segue a música ‘Calibre’, do grupo Paralamas do Sucesso.
Trata-se de outro retrato do que acontece em terras cariocas por quem as conhece por dentro. Reproduzo-a na íntegra:
“ Eu vivo sem saber até quando ainda estou vivo
Sem saber o calibre do perigo
Eu não sei, daonde vem o tiro (2x)
Por que caminhos você vai e volta?
Aonde você nunca vai?
Em que esquinas você nunca para?
A que horas você nunca sai?
Há quanto tempo você sente medo?
Quantos amigos você já perdeu?
Entrincheirado, vivendo em segredo
E ainda diz que não é problema seu
E a vida já não é mais vida
No caos ninguém é cidadão
As promessas foram esquecidas
Não há estado, não há mais nação
Perdido em números de guerra
Rezando por dias de paz
Não vê que a sua vida aqui se encerra
Com uma nota curta nos jornais ”
Do ‘rap’ vamos pro roque. Do ‘morro’ passamos pro ‘asfalto’.
No entanto a mensagem é a mesma: a situação da violência urbana no Rio está fora de controle.
E ameaça mesmo a continuidade do Estado de Direito regido por leis. De fato assim é, infelizmente.
Como Herbert Viana do Paralamas colocou, “no caos ninguém é cidadão; não há estado, não há mais nação.”
A GUERRA NA CIDADE: CV X TC/ADA X TCP –
Esse problema atinge diversas capitais brasileiras, e mesmo cidades médias do interior.
No entanto, certamente no Rio de Janeiro é onde essa situação é mais aguda.
E mais antiga. No fim dos anos 70 surgiu no presídio de segurança máxima da Ilha Grande, em Angra dos Reis, a famosa ‘Falange Vermelha‘.
Em ouro texto, que breve publico, falo melhor disso. Aqui, pra resumir, a ‘Falange’ metamorfoseou-se no ‘Comando Vermelho’ (‘C.V.’).
O CV logo dominou boa parte das favelas e periferias cariocas. Pra se contra-pôr a ele, nos anos 80 veio o Terceiro Comando (‘T.C.’).
É um segredo ‘nem tão secreto assim’ que o TC foi fundado com a participação de alguns policiais e ex-policiais corruptos.
Que dessa forma almejavam competir com o CV pelo lucro da venda de entorpecentes.
Por esse motivo o Terceiro Comando era algumas vezes chamado de ‘Comando Azul’, alusão a cor da farda dos PM’s.
A seguir surgiu a facção ‘Amigos dos Amigos’ (‘A.D.A.’). O nome é inspirado na máfia italiana, cuja uma de suas múltiplas correntes se denomina ‘Amici del Amici’.
Nomenclatura a parte, ADA e TC se aliaram, formando uma parceria. Assim, os morros comandados pelos dois não se combatiam, uniam suas forças contra o CV.
No entanto, um grupo dentro do Terceiro Comando não aprovou a união com os ‘Amigos’. Numa dissidência, surgiu dessa forma o ‘Terceiro Comando Puro’ (‘T.C.P.‘).
O Terceiro Comando original, o TC, não combatia a ADA e nem o Terceiro Comando ‘Puro’, dissidente seu.
E em reciprocidade o TCP tampouco guerreava com o TC. No entanto, entre TCP e ADA o pau comia, eram considerados tão inimigos quanto o CV.
Descrevi aqui como a situação se desenrolou dos anos 80 até o começo dos 2000. Como já disse, há tempos não acompanho imprensa, então essas alianças e mesmo seus grupos podem estar bastante modificados atualmente.
Pro que nos importa aqui, ainda que com outros nomes e configurações, o fato é que os grupos de criminosos fincaram raízes nos morros e favelas planas de várias partes do Estado do Rio.
Tomaram conta do município do Rio de Janeiro e mais Niterói e Duque de Caxias, além de várias cidades do interior do estado.
Todavia, na Baixada Fluminense os ‘comandos’ não conseguiram se estabelecer tão firmemente – com exceção de algumas partes de Duque de Caxias (que é mais perto da área central do Rio).
Isso porque ali na Baixada a ação dos grupos de extermínio – conhecido como ‘Esquadrão da Morte’ ou ‘os Mão-Branca’ – é muito forte.
Assim, na Baixada surgiram posteriormente as milícias. Formada basicamente por ex-policiais e ex-bombeiros, a maioria deles expulsos da corporação por má-conduta.
Em alguns casos, participam também alguns policiais e bombeiros ainda na ativa. O que importa é que as milícias são organizações criminosas tão cruéis quanto os ‘comandos‘.
Com uma diferença: no princípio, as milícias não permitiam a venda de drogas nos territórios controlados por elas. Pra se sustentar, elas arrumavam outras formas de extorsão contra os próprios moradores.
Por exemplo, cobravam um ‘pedágio’ pra permitir a venda de botijões de gás dentro das favelas ou ‘comunidades‘.
Assim, um bujão de gás tem um ágio de 50% a 100% pros moradores da favela, que já têm o orçamento hiper-apertado por natureza.
As milícias instituíram além disso uma taxa ilegal pra permitir o transporte por táxis, moto-táxis e vans.
Os camelôs da região são extorquidos da mesma forma, precisam pagar a ‘licença’ pra milícia.
E ainda exploram a pirataria de TV a cabo, que no Rio é generalizada e conhecida como ‘gato-net’.
Um adendo: é evidente que em todas as cidades existe gente que pirateia sinal de TV por assinatura.
Aqui em Curitiba mesmo conheço pessoas que utilizaram desse ‘serviço’ ilegal. A diferença é que aqui e na maioria das cidades a fraude se dá ‘no varejo‘, digamos assim.
Alguém quer ter TV a cabo sem pagar pela assinatura. Aí então telefona pro técnico e esse vem a sua casa e instala ali um decodificador clandestino.
Só que nesse caso o roubo do sinal se dá individualmente, casa por casa. Se seu vizinho tiver TV por assinatura clandestina, você não saberá, pois no seu aparelho não pega o sinal desviado.
No Rio de Janeiro é diferente. Lá o roubo de sinal de TV se dá ‘no atacado’. Explico. Em cada ‘comunidade’ e em muitos bairros de periferia existe uma central não-autorizada de TV a cabo.
E nessa central o sinal é decodificado e daí enviado coletivamente a todas as casas da ‘comunidade’ ou bairro.
Ou seja, todos os moradores têm TV a cabo, sem precisar de uma assinatura formal. Porém como nada vêm de graça é preciso pagar uma taxa a milícia, que é quem comanda a central.
………
Seja como for, as milícias tomaram conta da Baixada Fluminense. E então começaram a entrar no município do Rio mesmo.
Um de seus epicentros na capital é a favela (plana, não é em morro) chamada Rio das Pedras, próximo a Barra da Tijuca na Zona Oeste.
Vocês sabem que a Barra é uma espécie de ‘subúrbio estadunidense’: um lugar afastado dos bairros centrais, que a elite e alta-burguesia escolheram pra morar justamente por ser distante do resto da cidade.
Pois bem. Rio das Pedras é ali do lado, inclusive dá pra ver dela os espigões na orla da Barra. A última coisa que os moradores da Barra querem são assaltos e arrastões nas suas ruas e praia, alias quem é que iria querer isso?
Daí surgiu a milícia em Rio das Pedras. Ela usa de todas as formas de financiamento ilegais. Inclusive correm boatos que não posso confirmar, mas que atestam que alguns comerciantes da Barra pagam uma ‘caixinha’ pra milícia, em troca da tranquilidade do bairro.
Alias, dizem que esse é o caso também na orla da Zona Sul e em bairros da Zona Norte igualmente. O que é fato é: a milícia estabeleceu uma base em plena Zona Oeste, ao lado de um dos bairros mais ricos da cidade.
Paralelamente a isso a milícia se expandiu e conquistou boa parte da Zona Oeste, em seus bairros mais periféricos como Santa Cruz, Sepetiba e o vizinho município de Itaguaí.
Logo ela seguiu crescendo e passou a dominar ‘comunidades’ na divisa entre as Zonas Oeste e Norte, em bairros como Bangu, Padre Miguel, Realengo, Quintino, Bento Ribeiro, etc.
Começaram então violentos confrontos com as quadrilhas de traficantes. A princípio, repito, a milícia não permitia a venda de drogas (depois isso veio a mudar, já falaremos melhor).
Assim o conflito carioca aumentou e se tornou multi-dimensional. Além dos comandos brigarem entre si pelos pontos-de-venda de drogas, enfrentavam agora a ira da milícia com seu crescente poder.
RIO, A “TERRA EM TRANSE”: COMO NA COLÔMBIA –
Já escrevi antes, a situação no Rio guarda vários paralelos com o que aconteceu na Colômbia. Nesse vizinho país (2º mais populoso da América do Sul só atrás do Brasil), 2 Cartéis de Traficantes, o de Medelím e o de Cali, se engalfinhavam numa disputa sangrenta.
Os choques ocorriam entre eles e contra as forças do estado. Paralelamente a isso havia uma guerrilha de esquerda ativa muito forte.
Cujos grupos mais significativos eram as ‘Farc‘ (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e o ‘ELN‘, ‘Exército de Libertação Nacional’.
Conflitos entre esses dois grupos e os militares atingiram níveis de guerra civil. No auge perto da virada do milênio a Farc chegou a controlar uma grande ‘área desmilitarizada’ na Amazônia Colombiana.
Pra combater as Farc e o ELN surgiu a milícia AUC – Auto-Defesas Unidas da Colômbia. As AUC, como as milícias cariocas fariam depois, no começo não permitiam o tráfico de drogas em seus territórios.
Vale lembrar que o que chamamos ‘tráfico de drogas’ na Colômbia está uma dimensão acima do que ocorre no Brasil. A coca é plantada um pouco na Colômbia mesmo, mas o grosso na Bolívia e Peru.
Porém independente do país que seja plantada, quase toda coca produzida na América do Sul é refinada na Colômbia, ou seja, ali ela vira cocaína. De forma que nesse país o jogo sujo do tráfico movimenta bilhões, é briga de cachorro grande.
No começo as AUC não permitiam a venda de drogas em seu território, portanto elas combatiam tanto as guerrilhas de esquerda como os cartéis.
No entanto, logo as AUC ”perderam a pureza”, se quiser ver assim. E passaram a também permitir a ação dos cartéis em seus territórios, desde que claro um alto pedágio fosse regiamente pago.
Portanto o conflito colombiano se tornou, repito, multi-dimensional. A partir do momento que as AUC também negociam com os cartéis, várias guerras paralelas se desenrolam, com múltiplas interações entre os grupos envolvidos:
– Os cartéis de Medelím e Cali se combatem entre si e contra o Estado.
– As guerrilhas Farc e ELN enfrentam as AUC e o Estado.
No entanto, quando as AUC resolveram aceitar o dinheiro sujo dos cartéis (o que as guerrilhas também fazem), nova situação se desdobrou, muito mais complexa.
As duas guerras se misturaram, tornando-se uma só. Tanto a milícia de direita quanto as guerrilhas de esquerda fazem alianças pontuais com os cartéis da droga.
Alianças que são tênues por natureza, pois visam apenas uma vantagem imediata. Se as circunstâncias se alteram, as ‘amizades’ também oscilam. Resultado: “Todos Contra Todos, como a CIA Gosta”. Bem complicado!
Da Colômbia já escrevi com mais detalhes quando visitei esse país, em 2011. Citei agora brevemente porque há paralelos com o Rio.
Em 2020 as últimas notícias dão conta que as milícias cariocas, como fizera a colombiana antes, agora também permitem a venda de entorpecentes em seus territórios.
Segundo uma investigação divulgada na imprensa, já são 180 favelas e ‘comunidades’ no Grande Rio comandadas por milicianos com bocas-de-fumo ativas.
Essas ‘biqueiras’ as vezes são operadas diretamente pelos milicianos e em outros casos ‘arrendadas’ aos comandos de traficantes. Sim, é isso. O domínio do território é da milícia. Ela quem determina as regras de convivência social.
Inclusive em quem os moradores devem votar nas eleições – apesar do voto ‘ser secreto’ (nos bairros dominados por milícias e comandos a população vota em bloco no candidato determinado pelos chefões, num verdadeiro ‘curral eleitoral’).
No entanto, a comércio de substâncias ilegais é de responsabilidade de um dos comandos, que dividem os lucros com os donos do local.
Por isso a música ‘Calibre’ dos Paralamas fala: “No caos ninguém é cidadão; não há mais estado, não há mais nação”.
De fato assim é. O Rio atingiu um ponto de caos. Como contei, agora a anos não vejo mais mídia, exceto muito esporadicamente.
No entanto, na primeira década do novo milênio, quando eu lia os jornais cariocas com frequência, vi histórias horrorosas de conflito urbano, de fato não devendo muito pra uma guerra civil.
Além de muitas chacinas e decapitações/amputações, os tumultos chegaram ao ponto de provocar refugiados, como uma guerra mesmo.
Em Curitiba e na maiorias das cidades brasileiras, quando uma quadrilha de traficantes toma o ponto da outra eles matam ou expulsam da ‘comunidade’ os líderes antigos.
No Rio a coisa é mais brutal. Os traficantes recém-chegados escolhem algumas casas na favela invadida e as tomam pra si, pondo dezenas de moradores no olho da rua.
Assim, algumas grandes favelas cariocas chegaram a ter, no começo do novo milênio, alguns mini ‘campos de refugiados’:
Alguns dos expulsos de suas casas, sem ter pra onde ir, acampam na praça na entrada da favela, pra poder manter seus empregos que são nas redondezas.
Oras, essa é a situação do Haiti pós-terremoto. Como sabem, a situação nessa ilha caribenha de ampla maioria negra já era difícil antes.
Em 2010 um fortíssimo tremor de terra abalou essa sofrida nação, as mortes foram na casa das centenas de milhares, estimadas entre 100 e 300 mil.
Após esses triste ocorrido, as praças da capital Porto Príncipe se tornaram campos de refugiados.
Imagens de satélite mostram diversos acampamentos improvisados pela cidade, em que a ONU e diversas ONG’s tentam como podem mitigar o sofrimento dos desabrigados.
Claro que no Rio a situação não chegou nesse extremo, afinal nenhum terremoto ocorreu ali. Ainda assim, embora em escala infinitamente menor, há um paralelo.
Além disso, não sei como a coisa está hoje, mas na década de 2000 você precisava consultar no rádio ou na internet se podia passar em algumas partes da cidade.
Se você ia pegar via expressa de grande movimento (como as Linhas Vermelha e Amarela ou a Av. Brasil) tinha que pesquisar se elas não estavam fechados.
Isso por conta que tiroteios entre traficantes ou deles com a polícia com frequência tornavam essas vias temporariamente intransitáveis.
Óbvio que isso apenas diminuía o risco, e não o eliminava. Você ficava sabendo que até quando saiu de casa a coisa estava tranquila.
Entretanto nada podia garantir que coisa não iria degringolar justamente no momento que você estava ali.
Então o que presenciei no Rio, a invasão do ônibus pelos meninos da favela e os motoristas se recusarem a nos levar até o Cristo, foi apenas o aperitivo. Uma pequena amostra do que os cariocas têm que enfrentar diariamente, a décadas.
Encerrando como comecei, temos que perguntar: como chegamos nesse ponto??? É isso que irei abordar no próximo texto, na sequência da série sobre a ‘Cidade Maravilhosa’. Alias, parafraseando o ‘Planet Hemp’ que já nos alertou:
“ A cidade é maravilhosa mas se liga, mermão.
Aqui fazem sua segurança assassinando menor. Então fica de olho aberto, a malandragem não tem dó.
Rio, cidade-desespero. A vida é boa mas só vive quem não tem medo. ”
Por ”malandragem não tem dó” é óbvio que D2 quis dizer exatamente que as ‘comunidades’ iriam se organizar em comandos/milícias, e passar a viver num ‘estado paralelo’.
E quando esse ‘estado paralelo’ se chocasse com o ‘estado oficial’ a burguesia não iria gostar do resultado. De fato assim se deu.
Sim, evidente, como diz a música do Rappa, “menos de 5% dos caras do local (os moradores de favela) são dedicados a alguma atividade marginal“.
A canção sabiamente esclarece que ”a grande maioria (das pessoas que vivem em ‘comunidades’) daria um livro por dia, sobre honestidade e sacrifício”. Pura verdade. Ainda assim, o problema permanece:
“A cidade é maravilhosa mas se liga mermão. Fica de olho aberto, malandragem não tem dó. A vida é boa mas só vive quem não tem medo”.
Como não ter medo com as coisas correndo soltas dessa maneira? Finalizo com sábio aviso da música dos Paralamas:
“ Perdido em números de guerra, rezando por dias de paz.
Não vê que a sua vida aqui se encerra com uma nota curta nos jornais?
No caos ninguém é cidadão. As promessas foram esquecidas.
Não há estado, não há mais nação ”.
Que situação! Deus nos ajude!!!
“Deus proverá”
Esse dias apareceu uma notícia no jornal sobre uns meninos que desapareceram no Rio. Os pais pediram ajuda para a polícia, é claro.
O problema é que as crianças se perderam em território dominado pelo tráfico, logo a própria polícia, sem rodeios, disse que não entrava lá sem ser com uma operação completa.
A civilização acabou no Rio e as autoridades nem tentam disfarçar mais.
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Uma triste e duríssima realidade.
Valeu pelos apontamentos, irmão. Deus te Abençoe.
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0 rio de janeiro e lindo Deus caprichou mas o maĺ também
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Assim é o Rio. ‘Capital do Melhor e do Pior do Brasil’, como alguém bem definiu – esse alias será o título de uma das próximas matérias da série.
Obrigado pelo comentário.
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O Rio de Janeiro continua lindo, e continua sendo. Possui a prerrogativa de sintetizar em um exíguo espaço geográfico, tudo o que de melhor, e também tudo o que de pior o Brasil é capaz de produzir. Alfa e ômega em si mesmo, todos os espectros, do sincretismo religioso à convivência do bem e do mal sob o mesmo “teto”, bem como todas as variantes e tons intermediários. Fascinante e perigoso. Belo e bizarro. Conhecer o Rio e sua capital é ter uma aula prática imersiva e representativa do que é este grande e por vezes tolo país. Terra do poeta “Gentileza”. Terra de tanta disputa e sangue vertido na “bruteza”. Pedaço de mundo privilegiado, não obstante, pela sua própria natureza.
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Valeu pelo comentário, irmão.
Bom ano pra todos, que Deus Pai e Mãe nos Abençoe.
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