Por Maurílio Mendes, O Mensageiro
Publicado em 7 de Setembro de 2022, Bi-Centenário da Independência da Pátria Amada
Esse texto fecha a série sobre o Rio de Janeiro, a verdadeira Cidade-Maravilhosa.
Seus encantos são mundialmente conhecidos, tão cantada em verso e prosa.
Até por isso escolhi algumas músicas pra nomear os textos da série: abertura, sequência e encerramento dela.
Sua beleza natural, e também seus problemas – sendo a violência urbana apenas um deles -, são bastante conhecidos.
BARRA DA TIJUCA, UM “SUBÚRBIO ESTADUNIDENSE”:
PERTO E LONGE AO MESMO TEMPO –
Até algumas décadas atrás a vida política e econômica do Rio se concentrava ainda no Centro, Zona Sul e nos bairros mais centrais da Zona Norte, ao redor do Maracanã.
Na Zona Oeste já haviam bairros diversos bairros operários e populares as margens do trem de subúrbio que sai da Central do Brasil e da Avenida Brasil.
A orla da Zona Oeste, entretanto, ainda era pouco urbanizada, e certamente bem menos aburguesada.
Em 1970 ainda haviam chácaras mesmo perto do mar, e poucas casas, quase nenhum prédio alto no bairro.
Quando o fim do século passado foi se aproximando a situação mudou.
A região era pouco urbanizada e não tinha grandes favelas por perto.
Portanto podia ser remoldada mais livremente, o que era impossível na Zona Sul.
Em Copacabana, Ipanema e entorno a densa urbanização, inclusive com ocupações irregulares nas encostas, tornavam impossível “recomeçar do zero”.
Enquanto que na Barra da Tijuca havia mais espaço disponível.
Então a alta burguesia começou a fazer do bairro uma espécie de “subúrbio estadunidense”.
Apenas na Barra as moradias de luxo eram muitas vezes em prédios, e não em casas como nos EUA.
Ressalvada essa diferença, as semelhanças são evidentes. Como já escrevi antes:
“ O pessoal da elite e alta burguesia escolheu a Barra da Tijuca pra estar distante e próximo do Rio ao mesmo tempo.
Poder aproveitar ao máximo a extensa vida cultural da cidade, ir a jogos no Maraca.
E ainda assim ficar afastado dos problemas cariocas, não o menor deles a violência.
No começo saiu como o planejado. Mas com a melhoria dos transportes o Rio ‘alcançou’ a Barra, se quiser ver assim.
Hoje, a Praia da Barra da Tijuca é do povão, igual as da Zona Sul.
Não deu certo a estratégia de se isolar. Deixo pra vocês avaliarem se isso é bom ou ruim. ”
Até os anos 90 o acesso a Barra era bem mais complicado.
Em 1997, no entanto, é inaugurada a Linha Amarela, via expressa unindo as Zonas Norte e Oeste.
A partir daí os trabalhadores do subúrbio começam a passar os domingos também na Praia da Barra, não se restringindo mais a Zona Sul.
Li na época num jornal de grande circulação nacional que os moradores da Barra apelidaram os suburbanos que vinham compartilhar a praia com eles de “Os Amarelos”.
Fazendo referência claro do caminho que eles utilizavam pra chegar ali.
Com ou sem a pecha, o fato é que a orla da Zona Oeste se tornou mais parecida com a da Zona Sul.
E na década de 10 desse século 21 esse processo veio a se acentuar ainda mais.
De 2012 a 16 foram inaugurados os 3 ramais do BRT dos sistema TransCarioca e suas extensões.
Hoje se usa essa sigla, oriunda do idioma inglês (aqui em Curitiba, que criou esse modelo, chamamos de ‘Expresso’).
Nomenclatura a parte, o BRT só foi implantado nas Zona Norte e Oeste, no Centro e na Zona Sul não.
Ainda assim, ele liga de forma rápida e barata as periferias da Z/N e Z/O a orla da Z/O.
Antes pra ir dos distantes subúrbios da Zona Norte era preciso baldear de ônibus várias vezes, e eles iam parando em todos os pontos.
A cada baldeação tinha-se que esperar nova condução e pagar nova passagem, tornando inviável uma família numerosa do subúrbio ir a orla da Zona Oeste dessa forma.
Com o BRT tudo mudou. Articulados vão por pistas exclusivas, quase sem paradas e cruzando as montanhas por túneis.
Assim e o trajeto é feito em uma hora e pouco, contra quase o dobro disso anteriormente.
Terminais fazem a integração gratuita com alimentadores, agora paga-se somente uma passagem.
Resultado: a Zona Norte e as vilas afastadas da Zona Oeste passaram a ter a Barra como opção de lazer acessível.
Até porque da Z/O (Santa Cruz, Campo Grande, Sepetiba, etc) é bem mais perto ir a B. da Tijuca que a Zona Sul.
Passei o feriadão de 7 de Setembro (de 2020, exatamente dois anos antes desse texto ser publicado) na Barra da Tijuca.
Nas areias da praia que um dia foi um retiro pros que têm conta bancária mais alta hoje se ouve muito ‘funk’, exatamente como em Copacabana e Ipanema.
O Brasil é um só: ‘funk’ e favelas no Nordeste, bem como ‘funk’ e favelas no Sul. O Rio também é um só.
……….
Já seguimos com o texto. Antes algumas fotos do Pão-de-Açucar. Primeiro o museu que mostra os modelos anteriores do bondinho.
Panorâmicas do alto do Pão-de-Açucar:
A TRILHA SONORA É A MESMA;
MAS AS CALÇADAS E Nº DOS POSTOS É DIFERENTE –
Como todos sabem, o desenho ondulado das calçadas da orla carioca é mundialmente famoso, um símbolo mesmo da cidade.
Pera lá. Da ‘orla carioca’ não. Da orla da Zona Sul carioca, melhor dizendo.
Esse ícone está presente em Copacabana, Ipanema e São Conrado.
No entanto, a Zona Oeste preferiu dispensar as faixas imitando as ondas.
Nas Praias da Barra da Tijuca e do Recreio dos Bandeirantes há nas calçadas o desenho de peixes.
Outra coisa: a numeração dos postos de salva-vidas também muda.
O Posto 1 é no Leme, dele até o Posto 6 em Copacabana.
No começo de Ipanema está o Posto 7, ou seja, a mesma numeração.
E o Posto 12 fica no final da Praia do Leblon. Em São Conrado está o Posto 13.
Portanto toda a Zona Sul usa a contagem iniciada em Copacabana/Leme.
Assim que adentramos na Praia da Barra, no entanto, nos deparamos novamente com o Posto 1.
A numeração zera. Mais uma vez a Zona Oeste se recusa a aproveitar o que veio da Zona Sul e cria seu próprio sistema.
Na contagem ocidental os Postos 1 a 8 estão na Barra, do 9 ao 12 no Recreio dos Bandeirantes.
Vejam vocês, visitei Pernambuco 2 meses depois do Rio.
Na orla da Zona Sul da capital a numeração dos postos se mantém mesmo em municípios diferentes (Recife e depois Jaboatão).
No RJ muda até dentro do município, pois a Z/O quis firmar que era diferente das outras praias cariocas.
Exatamente pelo que já falamos, a Barra e imediações não se via fazendo parte da mesma cidade.
No auge dessa tentativa, no começo dos anos 90 antes da Linha Amarela e do BRT, vinha surtindo algum resultado.
Uma reportagem dizia que boa parte das crianças dos condomínios da Barra sequer sabiam que moravam no Rio de Janeiro!
Quando iam ao Centro ou a Zona Sul elas falavam que ‘foram ao Rio’, como se a Barra fosse uma cidade a parte.
Ou melhor dizendo, seria o ‘Novo Rio. Aproveitando o melhor da metrópole, sem ter que compartilhar o pior.
Por um tempo funcionou como esperado, depois não mais.
Eu mesmo comprovei, estive duas vezes na Praia da Barra da Tijuca, no final de 1997 e depois em 2020.
Nesses 23 anos que se passaram, o mar é o mesmo, mas o resto… quanta diferença!!!
Ainda assim, quando falamos que “o Rio alcançou a Barra” é de forma relativa.
De fato o bairro não é mais como era nos anos 90, quando se parecia mais com um subúrbio estadunidense do que com as praias da Zona Sul.
Ainda assim, o problema das balas perdidas não atinge a Barra, pois não há morros por perto.
Enquanto que essa situação é crônica em outros bairros cariocas, tanto no Centro, quanto burguesia e periferia.
As imobiliárias até colocam nos classificados o termo “sem morro“.
Pra indicar que o apartamento é longe das favelas, ou se for perto é na face oposta, onde os respingos dos tiroteios não chegam.
Se não tiver a indicação “sem morro” significa que da janela dá ver a favela.
Portanto o imóvel vale metade dos outros no mesmo prédio mas que não têm essa visão “privilegiada”.
Então. A Barra da Tijuca surgiu pra ser o “Novo Rio”, perto e longe ao mesmo tempo.
Diria que o resultado almejado foi parcialmente atingido.
Ali, todos os prédios são “sem morro”, o aviso é desnecessário. Por outro lado, nas areias da praia o público – e a música tocada – hoje é parecido com Copacabana e Ipanema.
Vejamos mais um pouco da B. da Tijuca, o bairro e sua praia:
Afinal, por que a Barra quis “se separar” do resto da cidade?
Se pararmos pra pensar, o Rio de Janeiro é uma das cidades mais belas do mundo, “senão a mais bela”, conforme já escrevi.
Por que alguém desejaria tendo o privilégio de estar dentro da Cidade-Maravilhosa ter uma certa distância dela?
Certamente a proliferação descontrolada das favelas é parte fundamental dessa questão.
Já fiz muitas vezes esse esclarecimento, mas terei que fazê-lo de novo:
Não falo em “favelas” com desprezo burguês. Gosto de periferias.
Morei 15 anos numa das favelas de Curitiba, o Canal Belém, no Boqueirão, Zona Sul.
Sei muito bem, inclusive na prática, que a imensa maioria de seus moradores são trabalhadores honestos, ao contrário do que propagam alguns de extrema-direita.
Agora, não podemos tapar o sol com peneira pois não resolve coisa alguma.
A expansão descontrolada das favelas já é um problema gravíssimo em si mesmo.
Além de gerar diversos outros, “não o menor deles a violência urbana” fora de controle, como abri o texto dizendo.
E, bolas, pode haver exemplo melhor disso que o próprio Rio de Janeiro?
As coisas são como são, e o ‘pensamento positivo’ tão em voga entre a extrema-esquerda em nada ajuda a entender o problema, muito menos solucioná-lo.
Chamar a favela de ‘comunidade’ e atribuir tudo ao ‘racismo’ não altera a realidade, apenas a mascara.
Isto posto, sigamos. Como o Rio chegou a essa situação? Que aliás já se tornou crônica:
O Morro da Providência no Centro é a primeira favela do Brasil, de 1897 (abaixo falo mais disso).
Como todos sabem, o Rio de Janeiro foi capital do Brasil por praticamente 2 séculos.
Salvador foi a 1ª sede da administração portuguesa, ainda na época que éramos colônia obviamente.
Em 1763 essa primazia foi transferida pro Rio de Janeiro.
Onde permaneceu até 1960, quando o presidente Juscelino Kubitschek inaugurou Brasília.
Ambas as decisões, tanto o fato do Rio passar a ser sede da administração federal quanto a de deixar de sê-lo, foram motivadas pela cidade ser no litoral e possuir porto.
A primeira mudança, da chegada da Corte, era porque por ali saíam os minérios preciosos.
E a segunda, de saída do Palácio Presidencial, foi justamente porque JK julgou ser necessário focar no interior dessa nação-continente, pois a parte próxima ao mar já estava mais desenvolvida.
No começo da exploração portuguesa no Brasil o Nordeste era o centro econômico da colônia. O Sudeste era secundário.
E a maior parte do Sul, Norte e todo Centro-Oeste nem eram parte do que viria a ser o Brasil.
Pois ficavam a oeste da linha delimitada pelo célebre Tratado de Tordesilhas (1494).
As fundações de Belém-PA (1616) e Manaus-AM (1669) no Norte e a seguir Curitiba no Sul (1693) já fizeram parte do esforço luso de prescrever e re-escrever Tordesilhas.
Deus certo. Batida com os ‘fatos no solo’, a Espanha capitulou e em 1750 assinou com Portugal o ‘Tratado de Madri’.
Que concedia a Coroa Portuguesa um território já praticamente com a forma do atual Brasil.
Voltemos pra não perder o foco. Antes o Nordeste era mais importante que o Sudeste, e muito mais que o Sul, Norte e Centro-Oeste, nesses 3 últimos a colonização mal iniciara, se tanto.
No século 18, no entanto, dizendo novamente o porto do Rio de Janeiro aumenta o volume das exportações pra Portugal dos minérios extraídos basicamente em Minas Gerais, alias daí vem o nome do estado.
Com isso, a capital colonial é tirada de Salvador e mudada pro Rio em 1763, pra que a Coroa pudesse fiscalizar melhor esse fluxo, que era sua maior riqueza.
O Rio de Janeiro enriqueceu, teve sua ascensão portanto, por conta de sediar o governo e um importante porto.
Só que aí que a coisa começa a engrossar. A escravidão era legal no Brasil até 1888, fomos um dos últimos países no mundo a extinguir essa bárbara prática.
Sendo a escravidão prática corrente até fins do século 19, ninguém se surpreenderá muito que o Rio também tenha enriquecido com comércio escravagista.
Afinal, se o porto servia como porta de saída dos diamantes e metais preciosos, servia também como porta de entrada dos seres humanos que chegavam acorrentados.
O Rio enriqueceu, repito, sendo o governo e pelo comércio, de forma geral mas também o comércio de escravos.
Algumas favelas que há em morros hoje na cidade começaram como quilombos, pois os escravos fugidos se encastelavam nas matas nas partes altas da encosta.
Uma vez que estar mais ao alto que seu inimigo e ainda por cima em meio a mata facilita e muito a estratégias de defesa militar contra grupos invasores.
………
Mais um adendo fotográfico pra mostrar o ‘xarpi’, a pichação no Rio de Janeiro:
MORRO DA PROVIDÊNCIA, CENTRO RIO:
PRIMEIRA FAVELA DO BRASIL –
Junte-se a isso a supressão da Revolta de Canudos, ocorrida na Bahia em 1896/97.
O Exército Brasileiro teve que tentar 4 vezes mas ao final, com grande banho de sangue, conseguiu enfim debelar a revolta iniciada por Antônio Conselheiro.
E o que isso tem a ver com o Rio de Janeiro? Tudo. A sede do Ministério da Guerra era defronte a estação-tronco da Estrada de Ferro Central do Brasil.
(Vocês sabem que essa ferrovia liga o Rio, então capital, a São Paulo [passando pela cidade de Aparecida ‘do Norte’, “capital religiosa do Brasil” pra quem é católico] e Minas.
Hoje, quando praticamente não há mais viagens de longa distância pelo modal de trilhos, ela ainda tem uma função importante:
É a Estação Central da extensa rede de trens de subúrbio.
Por isso extremamente presente na cultura popular, Inspirou um famoso filme homônimo.
E é cantada em várias músicas, a ‘Cara do Brasil’ (que nomeia a série de textos sobre a capital carioca) e uma do Rappa, entre muitas outras.
Do transporte falei com muitos detalhes e muitas fotos em outra oportunidade.
Aqui, nos importa que a região do Centro do Rio conhecida como ‘Central’ abrigava a sede do Comando-Maior das Forças Armadas, dizendo de novo.
As tropas que extinguiram Canudos começaram a regressar a capital federal, então o Rio evidente.
Só que o Exército não tinha mais necessidade imediata de um contingente tão grande na ativa.
Os soldados perderam seu soldo, e aí não tinham mais meios de sustentarem a si e suas famílias.
E haviam ouvido a promessa que na volta dos combates ganhariam casa própria.
Porém o Estado renegou sua palavra, e a soldadesca ao regressar ficaram “a ver navios” (literalmente, pois o Porto do Rio é nas imediações).
Então alguns deles acamparam no morro em frente a Central, pra ficarem bem a vista do Comando-Maior Militar.
Organizavam protestos, onde se liam nos cartazes: “Exigimos Providências”.
Pronto. Na boca do povo aquele passou a ser o “Morro da Providência”.
Como estamos no Brasil e muitas vezes assim acontece, nenhuma providência foi tomada.
Exceto que o ‘provisório virou permanente‘, como sói ocorrer com frequência também.
Assim, em 1897 surge oficialmente a primeira favela do Brasil
O que era pra ser um acampamento de poucas semanas ou meses está lá até hoje, 125 anos depois (escrevo em 2022).
Até mesmo o nome ‘favela’ remete a Guerra de Canudos. Me diga uma coisa, você sabe o que é a palavra ‘favela’, na origem?
Hoje, pensamos nesse termo como um local de moradia mambebe, geralmente invadido.
Entretanto, antes de adquirir essa acepção, qual o sentido original da palavra?
Simples. Muita gente não sabe, mas ‘favela’ é um tipo de cactus que prolifera no Sertão semi-árido Nordestino. O nome científico é ‘Cnidoscolus quercifolius‘.
Em Canudos havia o “Morro da Favela”, onde a planta ‘favela’ crescia em abundância.
As tropas trouxeram mudas do interior da Bahia. E as replantaram no local onde acamparam, no Centro do Rio.
Trouxeram também o termo. Assim, o local, além de conhecido como “Morro da Providência”, também passou a ser chamado na boca do povo como “Morro da Favela”.
Bingo. A partir daí o termo “favela” metamorfoseou-se em seu sentido corrente, uma aglomeração de casas precariamente construídas.
PROLIFERAÇÃO DE FAVELAS NOS MORROS:
A PRINCÍPIO A SOCIEDADE APOIOU –
Hoje pode parecer bastante incrível, mas é a pura verdade:
Quando o movimento de surgimento de diversas favelas nos morros tomou escopo logo após a virada do séculos 19 pro 20 a alta burguesia apoiou e e facilitou o processo.
Não é difícil entender o porque, quando você consegue captar a dinâmica da sociedade da época.
Em fins do século 19, a parte ‘nobre’ do Rio ainda era a região central.
A classe média-alta e elite residiam nos bairros nas proximidades do núcleo original da cidade.
A orla da Zona Sul, que no século 20 assumiu essa primazia, antes dos túneis e da popularização do automóvel era uma parte distante e difícil acesso.
Claro que bairros como Copacabana e Ipanema já eram urbanizados.
Acontece que na ocasião poucas pessoas moravam perto da praia.
Pois era demorado e caro se deslocar todos os dias pra trabalhar no Centro, que era então o núcleo da cidade, em todas as dimensões.
Muito comum era as pessoas de melhores condições financeiras morarem no Centro e bairros logo nas imediações, e terem casas de veraneio na orla, onde elas passavam os fins-de-semana.
O começo da Zona Norte, de onde é possível ir ao Centro sem necessitar túneis, era bem povoado.
Alguns dos chamados ‘subúrbios’ já existiam mas eram na época relativamente bem distantes.
A Zona Oeste era esparsamente habitada, pra dizer o mínimo. Na verdade vários bairros ainda eram área rural.
Ou seja, a vida cultural, política e econômica da cidade pulsava mesmo no e ao redor do Centro.
Como eram os guetos de então? As favelas mal haviam se iniciado, não tinham importância na consciência da maioria das pessoas.
O grande problema social então eram os enormes cortiços, chamados de ‘cabeça-de-porco’, que se espalhavam pela região central. Antigos casarões transformados em pensões.
Muita gente, as vezes perto de uma dezena, se amontoavam em um único quarto, dormindo precariamente uns sobre os outros.
Os banheiros, quando existentes, eram coletivos: um banheiro apenas pra pensão inteira muitas vezes, ou seja, que tinha que ser compartilhado por dezenas de pessoas.
Os cortiços eram fontes de diversos problemas sociais, de saúde pública principalmente, mas também focos de criminalidade.
Quando aboliram a escravidão, em 1888, muitos ex-escravos estavam enfim livres.
Porém sem emprego, moradia e qualificação pra conseguir casa e trabalho dignos.
Assim muitos foram se amontoar nas pensões ‘cabeças-de-porco’, aumentando a tensão numa situação que já era volátil por si só.
Por isso, quando muita gente começou a deixar os cortiços e ocupar as encostas do morro, a elite e alta-burguesia, que então se concentravam no Centro e proximidades, sentiu um alívio.
Incentivou e mesmo engendrou o movimento. Afinal, na visão da época, a área ‘nobre’ da cidade estava sendo ‘limpa’.
Diversas encostas de bairros começaram a ser ocupadas por favelas.
Como a região da Tijuca, Grajaú e Vila Isabel, bem como muitos outros bairros da Zona Norte. O mesmo se deu na Zona Sul.
As pessoas de mais dinheiro, repito, não apenas não se importaram como acharam muito bom.
Pois na visão deles na ocasião isso estava melhorando onde realmente importava.
Mesmo a Zona Sul não tinha nem de perto a importância que viria a ter depois, e certamente não seria a degradação da Zona Norte que esquentaria suas cabeças.
Veio a massificação do automóvel, vieram os túneis, e a situação mudou radicalmente.
O Centro, mesmo com o esvaziamento de vários cortiços, acabou perdendo importância como local ‘seleto’ pra se viver.
A classe média-alta agora tinha condições de morar perto do mar e ir diariamente ao Centro trabalhar.
E logo até boa parte dos empregos foram migrando também pra Zona Sul.
A região mais central da Zona Norte, pouco após o estádio do Maracanã, também se consolidou como uma parte importante de classe-média.
Só que agora as favelas já estavam em diversas encostas, em todas as faces do Maciço da Tijuca e outras montanhas, nas Zonas Central, Sul e Norte. O que fazer?
Na primeira metade do século 20, praticamente nada foi feito.
O resultado está aí. Veja a cena a direita. E isso ao lado do Centro da cidade.
Mais uma galeria de imagens, a seguir prosseguimos a linha do tempo:
ANOS 60/70: BRASÍLIA É INAUGURADA; O RIO DEIXA A SEGUIR DE SER ESTADO; O REGIME MILITAR TENTA EXTINGUIR AS FAVELAS DA ZONA SUL MAS NÃO CONSEGUE –
Veio a virada pros anos 60, e com ela grandes mudanças.
Em 21 de abril de 1960, Brasília é inaugurada, e com isso o Rio deixa de ser a capital nacional, posto que ocupou por praticamente 200 anos.
Até então o atual município do Rio de Janeiro era o Distrito Federal.
Ou seja, não pertencia ao estado do Rio de Janeiro, mesmo estando dentro dele e tendo o mesmo nome (situação que ainda ocorre no México e Argentina).
A capital do Estado do Rio de Janeiro era Niterói, do outro lado da Baía de Guanabara.
Em 1960, como todos sabem, veio a nova sede máxima do poder.
No começo, pras pessoas se acostumarem que o Distrito Federal não era mais no Rio, se falava ‘Distrito Federal de Brasília’.
Um pleonasmo evidente mas necessário por um tempo, até a ideia se consolidar.
O município do Rio passou a se constituir no Estado da Guanabara.
Foi uma espécie de ‘transição’. Pro Rio não ser rebaixado imediatamente de Distrito Federal a mero município, foi um estado, por mais 15 anos.
Então de 1960 a 1975 quando você saía do Rio e ia pra Baixada Fluminense ou pra Niterói mudava de estado.
O núcleo da cidade era numa unidade da federação, a região metropolitana em outra.
A capital do estado do Rio de Janeiro permanecia em Niterói.
Em 1975 não teve jeito. Consideraram que o período de transição findara, e os estados do Rio de Janeiro e Guanabara foram fundidos.
Isso significa que o município do Rio deixou de ser o estado da Guanabara e passou a ser a capital do estado do Rio de Janeiro.
Niterói então passou a ser somente um município, cessando de ser capital evidente.
A Assembleia Legislativa do Estado do Rio (cuja sigla é ‘Alerj’) está atualmente no Palácio Tiradentes, no Centro do Rio, que sediava o Congresso Nacional até 1960.
Por sua vez, a Câmara de Vereadores de Niterói funciona no prédio que anteriormente abrigava a Alerj.
Ambos os prédios foram ‘rebaixados’ em uma esfera, de federal pra estadual num caso e estadual pra municipal em outro.
……..
JK inaugurou Brasília. Mas seus sucessores, Jânio Quadros e João Goulart (‘Jango’), não gostavam da nova capital, por vários fatores:
Era muito seca, sem mar e muito longe de tudo. Além disso, em alguns aspectos a cidade ainda estava em formação.
Então os prédios públicos já tinham toda a infra-estrutura necessária pra alguém governar, sim.
Só que obviamente em sua primeira década a vida cultural da nova capital era ainda iniciante, se comparado com o Rio então bem escassa.
Retardavam a transferência completa do governo. Caso esse curso tivesse se mantido, provavelmente Brasília teria sido abandonada.
Hoje seria uma cidade-fantasma no meio do Cerrado Goiano. Teria sido só uma brincadeira.
Uma brincadeira bem cara, alias, ao custo de bilhões sobre bilhões.
Porém veio o regime militar, e os generais ‘vestiram a camisa’ de Brasília, e concluem o processo de transição pra nova capital.
Por exemplo, JK construiu Brasília e a Rodovia Belém/Brasília.
Acontece que ele não teve tempo de mudar a numeração das estradas federais, que continuou centrada no Rio.
Como dito acima, a Avenida Brasil era a BR-01, enquanto que a Via Dutra, principal estrada desse país ligando o Rio a São Paulo, era a BR-02.
Os militares fizeram essa parte. Agora o número de cada estrada federal (BR-116, BR-050, BR-381) indica a posição da mesma em relação a Brasília, e não mais a antiga capital.
Por exemplo, a própria Via Dutra agora é parte da BR-116, como todos sabem.
Voltando a nosso foco de hoje, os militares retiraram qualquer possibilidade do governo nacional voltar pra sede anterior, mas não esqueceram de investir no Rio de Janeiro.
Em Botafogo, na Zona Sul carioca, há o Morro do Pasmado.
Então. Até 1964 ele estava ocupado por uma pequena favela.
Assim que assumiu, em 64 mesmo, o regime militar demoliu a favela do Pasmado.
Transferindo os moradores pra conjuntos habitacionais nos subúrbios das Zonas Norte e Oeste, que a época eram muito distantes.
Era só o ‘início dos trabalhos’. Ao redor da Lagoa Rodrigo de Freitas haviam 2 grandes favelas:
A do Morro da Catacumba (que obviamente é na encosta da montanha) e a da Praia do Pinto, que era plana.
Em 1969 ambas são desmanteladas, novamente seus moradores foram removidos pra longínquos conjuntos habitacionais no subúrbio.
Que são criados especificamente pra isso. O mais famoso deles é a Cidade de Deus, na Zona Oeste, que já foi tema de livros e filmes.
Também se destacam as Vilas Kennedy e Aliança. Foram financiados em parte pelo governo estadunidense, através da chamada ‘Aliança pro Progresso’.
Daí alias os nomes, um chamado Vila Aliança e outro homenageando o ex-presidente ianque, morto em circunstâncias suspeitas em Dallas/Texas, nos EUA, no ano de 1973.
O governo pretendia extinguir todas as favelas da Zona Sul do Rio.
Na virada pros anos 70, prédios de luxo lançados em São Conrado, perto da Rocinha, chegavam a trazer nos panfletos imagens do morro com a mata reflorestada, sem a favela.
Já em 64 tiraram uma pequena favela, a do Pasmado. E em 69 duas favelas grandes, a Catacumba e Praia do Pinto.
Na sequência viriam também a Rocinha, Vidigal, Cantagalo-Pavão/Pavãozinho, Babilônia/Chapéu Mangueira, Cabritos/Tabajaras e em última análise todas as favelas perto da orla.
No começo da década de 70, embalados pelo tri-campeonato na Copa do Mundo do México em 1970, a burguesia carioca sonhou com isso, com uma orla sem favelas nas encostas.
E assim se daria, se o vento não tivesse mudado. Mas ele mudou.
Em 1968 vem o Ato Institucional nº 5 (‘A.I.5‘), que endureceu de vez a conjuntura política brasileira.
A partir de 1969 – justo o ano de remoção da Catacumba e Praia do Pinto – a guerrilha intensifica seus ataques contra as forças de segurança.
Não vou entrar no mérito aqui se as ações da guerrilha são justificadas ou não, senão descambaria pra uma discussão altamente polarizada e infindável.
O que importa é: praticamente todas as embaixadas ainda se localizavam no Rio de Janeiro.
Os embaixadores dos EUA e da Suíça são sequestrados, como se sabe.
E esses atos foram facilitados pela geografia peculiar do Rio.
Com suas ruas estreitas em vários pontos e muitos morros ocupados por favelas, inclusive com muita mata em alguns casos.
Nada disso existe em Brasília. É uma cidade plana e com largas avenidas.
Por conta disso, quase todos os países, com uma década de atraso, enfim mudam as embaixadas pra nova capital, por motivos de segurança.
Isso consolida Brasília, eliminando mais um traço de capital que permanecia no Rio.
Por outro lado, o governo federal precisa agora centrar forças em combater as ações da guerrilha.
Com isso, o projeto de eliminar as favelas da Zona Sul do Rio é temporariamente suspenso.
A Rocinha e outras ‘comunidades’ seriam removidas depois, quando a coisa acalmasse.
Porém quando a violência política enfim amainou, do meio pro fim dos anos 70, o regime militar sentia que se encaminhava pro fim.
E iniciou a transição pra democracia, promovendo gradualmente a anistia, fim da censura, volta dos direitos políticos e eleições diretas pra governador e prefeito das capitais, etc.
Não havia mais clima pra remoções forçadas de favelas.
Compreensível que boa parte dos ‘beneficiados’ com uma casa nos distantes subúrbios rejeitasse esse ‘presente’.
Os moradores dos morros da Zona Sul trabalham ali perto, afinal esse é o principal polo de empregos da cidade.
E ninguém quer ir residir onde é preciso ficar de 2 a 3 horas sacolejando em trens e ônibus todos os dias na ida e o mesmo tempo na volta, pra poder chegar ao trabalho.
Preferem morar nos morros da orla, mesmo que esses não tenham infra-estrutura, a ter uma casa regularizada com água, luz, saneamento e escritura mas no que aparentava ser o fim da cidade.
No fim dos anos 60 o projeto militar ainda estava no início.
Então ele tinha todo gás pra simplesmente pôr os moradores do Pasmado, Catacumba e Praia do Pinto num ônibus.
E determinar relocação compulsória pra Cidade de Deus, Vila Aliança, Vila Kennedy, etc.
No entanto, durante os combates mais encarniçados contra os rebeldes essa deixa de ser a prioridade.
E uma década depois de 1964 o clima já está bem distinto.
No final dos anos 70, as pessoas começam a ter maior liberdade política.
Até pra remediar os piores excessos que ocorreram nos anos de ‘guerra suja’.
Portanto não dá mais pra usar força policial pra arrancar as pessoas de suas casas nos morros e obrigá-las a se mudarem pra um subúrbio que elas não querem ir.
A Rocinha e todas as outras favelas da Zona Sul estão ali até hoje.
Fora que cresceram muito de tamanho nas últimas décadas.
Também houve grande aumento das favelas nas outras partes da cidade, evidente:
Zonas Central, Norte e Oeste (nesse caso muitas vezes as favelas são planas) e Grande Rio (Baixada e a ‘Grande Niterói’ do outro lado da Baía).
O resultado é que parece que os cariocas se acostumaram a conviver com a violência de forma crônica.
Pior, de tempos em tempos explodem ondas de ações criminosas.
Que por sua vez exigem ações do estado que lembram ocupações militares ou conflitos bélicos.
Quando estive no Rio, em 2020, o que presenciei foi algo bastante preocupante:
Uma cidade ocupada militarmente, qual se fosse Bagdá/Iraque ou Cabul/Afeganistão.
É o que tem pra hoje, meu irmão. Como a música bem definiu:
“ Rio 40 graus;
Cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos;
O Rio é uma cidade de cidades misturadas;
O Rio é uma cidade de cidades camufladas;
Com governos misturados, camuflados, paralelos;
Sorrateiros … ocultando comandos;
Capital do sangue quente;
Do melhor e do pior do Brasil ”
Sabe rezar? Reze. Não sabe? Aprenda.
O Cristo é o símbolo máximo da cidade, visível de várias partes dela.
Então encerramos a série como a abrimos, com essa imagem.
Que Deus Pai Abençoe o Rio de Janeiro.
Deus proverá
Muito legal a explicação do “dialeto” teteCá. Parece-me que essa era uma “onda” também entre os mais antigos. Lembro que meu Tio, que mora no interior contava que a moçada usava além da “língua do P”, essa de trocar as sílabas. Então, o povo andava de taclecibi, tomo e curtia jogar uma tapelo. Haha. Um pequeno adendo, a antiga embarcação que você mostrou, é uma réplica de uma caravela, que foi montada por ocasião dos 500 anos do descobrimento do Brasil. Se não me engano, essa é uma que falhou inclusive, por uma pane no motor (é… não é uma recriação histórica, é uma réplica mesmo) e teve que ser rebocada às pressas para não correr o risco de adernar e afundar por estar à deriva (isso pode acontecer com qualquer tipo de embarcação na verdade). Forte abraço!
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Firmeza total irmão. Fala que é nóis.
Pois é, eu, você e esse colega que comentou abaixo fomos adolescentes nos anos 90, e foi aí que conhecemos mais profundamente o dialeto ‘teteCá’. Mas eu sabia que essa mania é mais antiga que isso.
Lembra do ‘Documento Especial’ da extinta Rede Manchete? Foi ao ar de 1989 a 1992. E eu tomei conhecimento do ‘teteCá’ num desses programas.
Portanto se na virada dos anos 80 pros 90 o ‘idioma’ já chamava a atenção o suficiente pra ser pauta de um documentário em rede nacional é porque a consolidação da prática já se dera na década de 80, pelo menos.
……….
Quanto a questão da caravela, agradeço os apontamentos, precisos como sempre. Atualizei o texto com eles.
Abraços, Deus abençoe.
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No finzinho dos anos 90 também virou mania trocas as sílabas entre a gurizada de Curitiba.
Eu estudava no Expoente, colégio particular, e lá a turma do fundão trocava as sílabas pra posar de vida loka.
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Grande Paulo, firmeza total.
Pois é, escrevi no texto que isso aconteceu em Curitiba nos anos 90, e na verdade acontece ainda hoje. Apenas não na mesma profundidade que no Rio, pois aqui fica restrito basicamente aos adolescentes, enquanto que lá é mais generalizado, usado por adultos de grupos ‘alternativos’ a margem da sociedade.
Abraço, Deus abençoe. Valeu pelo comentário.
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