Entre o Centro e o CIC: Boqueirão, Zona Sul

Por Maurílio Mendes, “O Mensageiro”

Publicado em 16 de janeiro, 2015

No ensaio fotográfico de hoje, vou focar num bairro que residi por 15 anos, de 2002 a 2017: Boqueirão, Zona Sul  (portanto morava nele quando produzi a matéria, em 2015).

Veja a direita placa de rua de sua espinha dorsal, a Marechal Floriano.

Ele fica entre o Centro e Cidade Industrial não na dimensão espacial, mas sim temporal.

Explico. Veja o mapa abaixo, retirada do sítio oficial do Ippuc, órgão de planejamento urbano da prefeitura.

Desde que Curitiba surgiu em 1693 até o censo de 1970 o Centro foi o bairro mais populoso.

(Nota: essa data se refere a a fundação oficial pelos europeus.

A região já era habitada anteriormente pelos indígenas, é óbvio.

Porém como não tenho dados da época pré-europeia teremos que nos ater a essa versão.)

Do censo de 1990 em diante o bairro mais populoso é a Cidade Industrial (Zonas Oeste e Sul), e o será pela Eternidade.

Isso porque a CIC tem 172 mil habitantes (censo de 10). 

Quem vem logo atrás é o Sítio Cercado (Zona Sul) que na mesma contagem se mostrou com 115 mil

Pichação nos telhados na Av. Marechal Floriano.

(Veja a população de todos os bairros, divididos pelas regiões da cidade.)

E o Sítio já está todo ocupado, não tem mais pra onde se expandir horizontalmente.

Já a Cidade Industrial de Curitiba, bem ao contrário, ainda tem muito espaço pra novos loteamentos.

A diferença entre ambos é grande, e não vai diminuir, antes irá aumentar. Tudo somado:

Desde a fundação e por quase 300 anos, o Centro foi o bairro mais populoso de Curitiba, até o censo de 1970.

Do censo de 1990 em diante, e pelos próximos 300 anos ou mais, a Cidade Industrial ocupará essa condição.

É um clubinho fechado entre os dois que monopolizam esse posto.

Só há uma exceção: no censo de 1980, o Boqueirão foi o bairro mais populoso de Curitiba.

Pois a Zona Central já decaía, mas a CIC ainda não havia explodido.

Várias casas num só terreno.

Portanto, entre os outros 73 bairros da cidade, foi o único que conseguiu se infiltrar entre a dupla e retirar, por um censo que seja, a liderança do clubinho.

O que nunca mais ocorrerá, façanha histórica e que permanecerá inédita.

Entre o Centro e a Cidade Industrial, eis então o Boqueirão.

Quartel do Boqueirão.

Não no espaço mas no tempo. Agora sabem bem o porquê.

…….

O Boqueirão é um bairro planejado, portanto com traçado artificial.

Suas ruas são paralelas e formam retângulos exatos, como as super-quadras de Brasília-DF.

Sobrados artesanais, a famosa “Cidade da Laje“: Vila Canal Belém.

Voltando ao Boqueirão, ele foi urbanizado na prancheta, não sei se nos anos 50 ou começo dos 60.

(Como vemos contemporâneo a capital federal, surfa na mesma onda.)

Pra ser uma cidade-jardim, uma espécie de ‘subúrbio modelo’.

Que mostraria a todos que aqui em Curitiba mesmo a classe proletária habita num bairro plano, arborizado, amplo e com as ruas retinhas, bem traçadas a régua e compasso.

Próximas 4: terrenos enormes, com várias casas no mesmo lote – padrão do Boqueirão.

Pegue o mapa de Curitiba (pode ser sua versão virtual na internet se o modal de papel for inacessível) e isso ficará claro.

Repare nos outros bairros de periferia, seja o vizinho Alto Boqueirão, ou os mais distantes Sítio Cercado, Tatuquara (todos eles também Zona Sul).,

Ou  Cajuru, o também vizinho Uberaba (ambos  Zona Leste), enfim qualquer um do subúrbio.

Verá que as quadras são pequenas e irregulares, as ruas sinuosas.

Pois cada vila surgiu separadamente (várias delas são invasões).

E foram se emendando como foi possível, sem planejamento, sem prancheta, enfim, ‘no mundão’ mesmo.

Já no Boqueirão, oh… quanta diferença. As quadras são retangulares e amplas, todas elas praticamente iguais.

Situação que se expande pra vizinha Vila Hauer, urbanizaram os gêmeos-siameses numa tacada só.

E nos planos da prefeitura assim deveria permanecer.

Só esqueceram de combinar isso com os moradores, que tinham outros planos.

Assim eles subdividiram infinitamente os lotes, fazendo casas de fundo.

Praça do Carmo, onde fica o terminal de mesmo nome. Tótem de concreto dos anos 70

Questionamento: Pra que um terreno enorme com só uma casa?

Vamos fazer mais casas no fundo. Toda família mora junto, ninguém paga aluguel.

Melhor: podemos até mesmo receber aluguel de outras pessoas.

Resultado: as moradias enfileiradas, com 5 ou mais casas em sequência (por vezes mais de 10), se tornaram o modo típico de viver do Boqueirão.

Próximas 2: mais casas de madeira, uma vez que estamos no Sul do Brasil.

Na dimensão do desenho automotivo, temos outro exemplo perfeito do povão ‘corrigir’ o planejamento especializado dos engenheiros.

…………..

Planejado e entregue a população no começo dos anos 60, nessa década e na seguinte o Boqueirão foi densamente ocupado, e não como a prefeitura esperava.

Por isso passou o Centro em população e chegou a liderança no censo de 80, o que nunca fora previsto.

Só que o mundo segue girando, e a Vida segue dando voltas. Criada nos anos 70 pra abrigar as indústrias, a Cidade Industrial se consolida e explode nos anos 80 e 90.

Tanto praquilo que foi criada – acolher barracões industriais – como, por consequência, também recebendo inúmeros loteamentos populares, cohabs e invasões.

Aqui e a esquerda: barracões industriais.

Pois as pessoas vão morar aonde há emprego. Por isso a partir de 90 toma o primeiro lugar em população, de onde não sairá mais.

Disso já falamos. Quero discorrer agora sobre um outro aspecto da formação da CIC, que afeta diretamente o Boqueirão:

Curitiba foi transformada num polo industrial (especialmente depois da vinda de duas montadoras de automóveis pra seus subúrbios metropolitanos nos anos 90).

Assim começa a faltar espaço pra novos barracões que possam abrigar fábricas na Cidade Industrial.

Ora, como falamos no Boqueirão os lotes são enormes.

Ocupados por muitas casas, mas ainda pertencentes a um dono só, com uma única escritura.

“Aluga-se casas”, direto com o dono.

Se ele decidir vender, 5 ou mesmo 10 famílias têm que se mudar queiram ou não.

Assim, depois da virada do milênio e o processo só se acelera, estão demolindo em massa as casinhas enfileiradas pra dar lugar a galpões industriais.

Há quadras e quadras no Boqueirão que não mora ninguém, é só barracão atrás de barracão.

Quitinetes: são 4 casas nesse sobrado. Esse conjunto até que é pequeno. Fotografei alguns bem maiores na mesma região, e também em Florianópolis-Santa Catarina.

Atualmente entre os 75 bairros o Boqueirão é 2º que mais tem fábricas, só atrás mesmo da Cidade Industrial.

…………

Pra compensar estão surgindo muitas quitinetes.

Empilham-se dezenas delas num único terreno, propiciando ainda moradia a preços acessíveis mesmo que se perca um pouco de privacidade, pela alta densidade.

……….

Falemos das fotos (várias não estão exatamente ao lado da descrição, busque pela legenda):

Rua das Carmelitas, belo fim-de-tarde de verão. As flores que cliquei no Boqueirão estão mais pra baixo nessa mesma matéria.

Praça do Carmo: essas placas verticais de concreto são a marca registrada da prefeitura da cidade nos anos 60 e 70.

Quartel do Boqueirão: a Avenida Marechal Floriano Peixoto existe por causa dele. Até o princípio do século passado (séc. 20) o bairro era rural.

A ‘Fazenda Boqueirão’ era um latifúndio, creio que de gado, que ocupava a maior parte das terras daqui, origem do nome.

Nos anos 30 o latifúndio já não existia mais, parcelado em chácaras menores. 

Ainda assim, a região era de difícil acesso, a única rua larga que passava mais ou menos perto era a Senador Salgado Filho, no vizinho Uberaba já na Zona Leste.

1º prédio alto do Boqueirão.

Essa via é muito antiga, portanto é estreita com muitas curvas, sinuosa como uma serpente.

Isso ainda era avançado, pra época. Saindo dessa via a situação piorava, pra se atingir o Boqueirão era por estrada vicinal ou mesmo no facão pra poder chegar.

Aí, nos anos 30, Getúlio fez o quartel, e de brinde a moderníssima avenida, ampla e reta, conectando-o com o Centro da cidade.

Ciclovia na Av. Marechal. Se você se interessa pelo tema, dê uma olhada no blog Ciclista Urbano Cwb.

Ao contrário das outras canaletas(corredores) do expresso, a Marechal ainda não tem prédios altos após o Centro.

Acima o pioneiro, em estágio final de construção (texto de 2015).

O primeiro prédio com elevador de todo Boqueirão, e também de toda Marechal fora do Centrão, o que inclui outros bairros.

Num ensaio anterior, em que percorri a pé o trajeto do ônibus que utilizava (475-Canal Belém) fotografei esse mesmo conjunto como ele é visto de longe, do alto do morro no bairro Uberaba.

………

A Marechal divide o Boqueirão em dois. A parte a esquerda (pra quem vem do Centro), a baixada do Rio Belém e divisa com o Uberaba, é que concentra mais a classe trabalhadora, e de uns tempos pra cá tem abrigado muitas indústrias.

Na tomada a esquerda estou na Marechal, fotografando essa metade que eu vivia. A vista é bonita, ao fundo a Serra do Mar.

Próximas 2: malharias e facções têxteis na Bley Zorning, a “Rua das Malhas“.

Há dois alimentadores que ligam os Terminais do Hauer e do Boqueirão, cada um vai por um lado da Marechal.

Pelo meu lado, mais proletário, vem o Iguape 2. Pelo setor oposto, mais abastado, passa o Hauer/Boqueirão.

O ponto final e inicial é o mesmo, mas o trajeto é completamente diferente. E o padrão social das vilas que as linhas servem varia bastante também.

Pois  a direita, o planalto, divisa com o Xaxim, tem renda muito mais elevada.

Ali predominam os conjuntos de sobrados de classe média-alta.

O perfil da parte direita e alta do Boqueirão é totalmente distinta da parte esquerda e baixa. Nem parece o mesmo bairro.

Na parte baixa do Boqueirão há a “Rua das Malhas”:

São dezenas de lojas de tecidos, uma ao lado da outra na Rua Bley Zorning. Pessoas vem de todo o Paraná se abastecer no atacado aqui.

Na parte alta, mais abastada, do Boqueirão, a Bley Zorning continua mas lá ela tem perfil residencial, e não comercial.

Ao cruzar o Rio Belém e entrar o Uberaba, a Bley Zorning muda de nome. Estive lá também.

Favela do Canal Belém.

………….

Como já falamos muitas vezes, eis a casa típica da periferia do Sul do Brasil (e do Norte também): madeira, lote que parece chácara, sem muro ou muro baixo.

Um dia foi comum também no Sudeste, mas não mais.

………..

Pra que as pessoas de classe mais humilde possa continuar a residir no Boqueirão, surgiram essas quitinetes.

Numa delas se abrigou numerosa colônia haitiana, como notam a direita.

Era fim de tarde e os irmãos após um dia duro de batente se refrescavam nas escadas.

Eis uma característica marcante, típica mesmo da raça negra caribenha.

Quando fui a vizinha República Dominicana (que como sabem divide com o Haiti a Ilha Espanhola) presenciei e retratei esse traço tão prevalente na população de lá:

Se congregar nas escadarias e saguões da cohab como se essa fosse sua sala de estar.

Eles colocam inclusive vasos com plantas nos peitorais pra tornar o ambiente mais agradável, pois é ali que passam boa parte de suas horas livres.

…………..

Ao esquerda sobrado requintado, amplo e de fino acabamento.

Mais raros na parte baixa do Boqueirão a esquerda da Marechal e por isso registrei, é o padrão do ‘outro lado’, a direita na seção alta do bairro.

……….

Horta em plena via pública, bem perto do Terminal Boqueirão.

Abóboras se proliferaram, alguém abriu uma clareira pra plantar um pé de abacate, pedindo as pessoas que não mexam na planta.

Esta cena é comum pelo bairro. Próximo a Avenida Cel. Luís J. dos Santos (mais conhecida como “a rua do posto Copa 70”) também há uma horta na praça no mesmo estilo.

Apareceu até propaganda da cerveja Skol.

………

Encerrando como comecei, um bi-articulado na linha Boqueirão/Pç. Carlos Gomes.

Abrimos com o Raio Vermelho, fechamos com o Raio Azul.

AS FLORES DO BOQUEIRÃO –

Nesse ponto termina o texto original. De brinde vamos ver o bairro todo enfeitado pela Natureza.

As 4 primeiras imagens de flores (acima, ao lado e as próximas 2) são de maio de 2014.

A tomada abaixo foi feita na esquina da Rua Bley Zorning.

(Aparece a placa no poste, a definição não é das mais altas mas dá pra ler.)

Alguns detalhes: cliquei bem no momento que uma imponente Caravan GM passava.

Por acaso você se lembra que essa era a perua do Opala?

Se sim, você, como eu, está ficando velho. Que coisa, né?

E ao fundo … mais uma casa de madeira! É o Boqueirão, pombas.

A esquerda o Astro-Rei já se encaminha pro recolhimento, mas ainda deu tempo de registrá-lo atrás dessa bela árvore.

As 4 fotos acima são de maio de 2014, como já foi explicado. Curiosamente todas elas são cor-de-rosa.

A direita uma cena parecida. Porém essa foi fotografada em janeiro de 15, no mesmo dia que fiz a matéria sobre o bairro.

Na galeria abaixo igualmente todas clicadas no comecinho do ano de 2015:

Encerramos com uma tomada mais antiga, de 12 de agosto de 2011. Feita na Avenida Coronel Luis José dos Santos.

Essa espécie tem as duas versões, clara e escura. Porém é raro ver ambas juntas.

Porque não nascem no mesmo pé. Ali eu consegui captá-las assim, entrelaçadas.

“Deus proverá”.

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.