África do Sul, o Mundo num só País

O ‘apartheid’ acabou! Nos tempos tenebrosos do regime racista eram proibidos os casais inter-raciais. Na época essas garotas brancas seriam condenadas a muitos anos de cadeia. Os rapazes negros, embora a lei previsse a mesma pena, na verdade seriam linchados no mesmo instante, naquele exato local. Hoje elas e eles são livres pra viverem seu Amor.

Por Maurílio Mendes, O Mensageiro

Publicado em 25 de maio de 2017

Mensagem-Portal sobre a África do Sul (ao fim do texto ancoro as ligações pras demais postagens da série).

Vamos falar sobre a luta secular pra pôr fim ao regime de discriminação racial.

No Novo Milênio, sob democracia, novos desafios:

Reduzir a violência urbana, que está na estratosfera, e também a desigualdade social, igualmente gigante.

1989: ‘apartheid’ vigente, praia em Durbã só pra brancos (r). Placa em inglês, africâner e zulu. Na língua nativa dos negros, ‘Durbã’ se chama ‘Ethekwini‘, falo mais em outra mensagem.

Imensa maioria das fotos de minha autoria, algumas de meus familiares. As que forem baixadas da internet identifico com um ‘(r)’, de ‘rede’.

PARTE 1: ‘APARTHEID’, INÍCIO E FINAL

A ida a África do Sul foi minha primeira viagem inter-continental. Eu nunca fui a Europa ou a Ásia. Digo, indo a África do Sul de certa forma eu estive também na Inglaterra, Índia e Califórnia/EUA.

Pelo seguinte: a República da África do Sul (abreviada R.A.S.) tem enorme população branca e indiana.

Os descendentes de indianos estão reunidos basicamente em Durbã.

Dos quase 3,5 milhões de habitantes dessa região metropolitana, quase um milhão têm ascendência na Índia (perto de 900 mil pessoas). O que torna Durbã ‘a maior cidade indiana do mundo fora da Índia’.

(Duas notas: 1) a ‘Índia’ da época inclui os atuais Paquistão e Bangladesh, e esses 2 são majoritariamente muçulmanos, já falo mais disso;)

(E 2) anteriormente escrevi errado que eram meio milhão de ‘indianos’ em Durbã. É quase o dobro disso.)

A influência dos europeus é ainda maior. Creio que todos sabem que a África do Sul tem grande população branca. Atualmente (2020) os caucasianos são 10% da população do país, e maioria da classe-média pra cima.

Os brancos já foram muito mais numerosos, entretanto. No fim da década de 70 eram quase 20% (18%, sendo mais exato), e na época eram praticamente a totalidade das pessoas da burguesia e elite.

Por um século ademais eles tiveram hegemonia absoluta na África do Sul impondo o ‘apartheid’ (‘manter separado’ em africâner, ‘heid’ tem raiz parecida com a palavra inglesa ‘hold’).

Orla de Durbã, hoje. Negros e brancos caminham juntos e brincam como irmãos. Claro que nem tudo é perfeito, mas comparado com o que era… Outro detalhe: veja como os brancos na África do Sul são brancos mesmo, loiros de olhos claros.

O regime que oprimiu as outras raças oficialmente começou em 1948, mas na prática desde que os colonizadores europeus pisaram lá em massa, em fins do século 19 – e início dos massacres data do século 17 .

Mais abaixo falamos melhor disso. Aqui, dando essa primeira pincelada, obviamente não é difícil entender que os brancos moldaram a África do Sul a sua imagem e semelhança, em todos as dimensões.

Tem mais: os europeus que foram pra lá são norte-europeus (‘normandos’), bem diferentes física e culturalmente dos sul-europeus (‘latinos’) que povoaram a América Latina.

Nelson Mandela, Avatar Sul-Africano, ‘Pai da Pátria’. Cultuado como santo por lá, esse quadro está na casa que fiquei na Cid. do Cabo.

Os brancos da sul-africanos têm a pele bem alva, quase sem mistura de sangue de outras raças. A maioria das pessoas têm olhos claros, verdes ou azuis.

Urbanisticamente falando, a África do Sul é totalmente parte da Anglosfera: pouca gente mora em prédios altos. Assim as cidades têm pouquíssimos edifícios, geralmente se resumem aos que são comerciais no Centro.

E mais uma leva de prédios residenciais na beira-mar (nas cidades que têm mar, óbvio. As que não têm aí menos prédios ainda).

Os ricos e a burguesia moram em subúrbios exatamente iguais aos dos EUA, só casas em ruas sem-saída, sem comércio na vizinhança.

Tem mais. Na Cidade do Cabo, quem tem dinheiro mora nos morros, os pobres no plano. Como na Califórnia-EUA.

Resumindo: se você esteve nos EUA, você sabe como são as cidades da África do Sul.

1-Antigas províncias (estados) da África do Sul do ‘apartheid’: Cabo (que ocupava mais da metade do país); Estado Livre Laranja; Trasnvaal (esses 2 eram ex-repúblicas africâneres que foram incorporadas ao Império Britânico na Guerra Anglo-Boer); e Natal; 2-As mesmas províncias com os ‘bantustões’; 3-Re-organização pós-‘apartheid’: Estado Livre Laranja vira apenas ‘Estado Livre’, cai a referência a Holanda; Natal vira Kwa-Zulu Natal (nesses dois só muda o nome, as fronteiras não se alteram nada ou quase nada); o Cabo é dividido em três, agora são Cabo Oriental, Cabo Ocidental e Cabo do Norte; Transvaal é dividido em quatro: Gauteng ao redor de Joanesburgo e Pretória, a menor mas a mais povoada província sul-africana; Noroeste; e Transvaal do Norte e Transvaal do Leste; 4-Como é hoje: Transvaal do Norte vira Limpopo, a capital também tem nome alterado de Pieterburg pra Polokwane; Transvaal do Leste se torna Mpumalanga; e a capital do Noroeste tem o nome mudado de Mmabatho pra Mafikeng. Mmabatho e Mafikeng são dois municípios que pertencem a mesma cidade, apenas antes a sede do governo era num e agora é no outro.

Óbvio, na RAS há muitas e muitas favelas miseráveis, nos EUA não. Mas de resto é igual.

Durbã é de certa forma exceção. Digo, ali há também os subúrbios a moda ianque, tanto planos quanto em ladeiras.

Acontece que em Durbã há favelas no morro. Por isso a ‘América na África’.

E existem também muitos prédios altos tanto a beira-mar quanto num morro de classe média-alta bem perto do Centro.

E obviamente a maioria negra e ‘de cor’, livre do ‘apartheid’ há mais de 2 décadas, vem se fazendo ouvir, inclusive economicamente.

Por quase oito décadas os indianos foram tão pobres e explorados quanto os negros nativos.

Desde que foram levados da Índia pra serem semi-escravos do Império Britânico, até o terceiro quarto do século 20.

Mas há 4 décadas os indianos vêm ascendendo muito na escala social.

Eles também sofreram ‘apartheid’. Só que quando o regime racista viu que ia cair, flexibilizou a opressão contra os indianos ainda nos anos 80.

Jornal no idioma zulu. Comprei num mercadinho dum bairro popular de Durbã. O caixa era negro. Perguntei “que língua é essa?” Ele não sabia. Veja bem, um negro, e não é que ele não sabia traduzir. Não sabia sequer que idioma era. Quem me informou foi o anfitrião do apartamento que fiquei, que é indiano e muçulmano. Eis a torre de babel que é a África do Sul…

Assim uma massa dos descendentes asiáticos pôde ‘pular o muro’ da discriminação e migrar pros subúrbios que oferecem vida mais confortável. De forma que em Durbã especialmente há uma alta e média-burguesia indiana, há subúrbios de elevado estrato em que eles predominam.

Com a queda do ‘apartheid’ em 1994, vários negros seguiram o mesmo caminho.

Hoje há uma pequena elite e uma numerosa classe média-alta formada por africanos nativos.

É comum subúrbios de ricos a moda ianque habitados por negros, e você os vê aos montes dirigindo os carrões mais caros, BMW’s, Mercedes, Audis, a lista toda.

………..

Ademais, há muitos brancos pobres, de classe trabalhadora. Nas favelas e piores bairros mais afastados a população é 100% de negros. Na elite são 90% brancos.

Ou seja, os extremos são segregados. A classe ‘E’ só tem negros, a classe ‘A’ ainda é um privilégio quase que exclusivo dos brancos.

No entanto toda classe média, as classes ‘B’, ‘C’ e ‘D’, tem gente de todas as raças.

Museu do ‘Apartheid‘, Joanesburgo: filma só o caveirão do regime racista, que a polícia usava pra entrar nas favelas negras quando havia distúrbios. Faz parecer pequenos seus similares do Chile e Colômbia.

Você vê brancos em serviços braçais/repetitivos, como encanadores, balconistas, que não exigem estudo e pagam pouco.

Se pegar um ônibus pra periferia, você já está nos bairros humildes, onde moram os assalariados em casas e apartamentos simples, desprovidos de qualquer luxo.

E ainda há descendentes de europeus no busão.

Só quando no terminal você troca pro alimentador que vai pras favelas e piores cohabs é que só há negros.

E, repito, o contrário também é verdadeiro, também vemos hoje muitos africanos nativos de pele bem escura em posições de destaque.

Democracia! Soweto, Joanesburgo, África do Sul, 2017: parte dos negros ascendeu a alta e média-alta burguesias. Veja a picape que esse aqui dirige. É comum hoje ver negros no comando dessas máquinas. Nos tempo do regime racista eles nem eram considerados seres humanos.

Negros morando em mansões que contam com piscinas e com empregadas (também negras, claro) de uniforme.

Observe a foto ao lado, que vale por mil palavras.

……….

A África do Sul tem 55 milhões de habitantes. As 4 maiores cidades são as únicas que ultrapassam 1 milhão.

Eis a população delas, incluindo região metropolitana (censo de 2011, dados do sítio citypopulation.de):

– Joanesburgo, 7,8 milhões (segundo outras fontes, já chega a 10 milhões);

– Cidade do Cabo, 3,4 milhões (4 milhões pela Wikipédia);

Eis a prova: essas crianças negras não estão rezando. É que na época do ‘apartheid’ muitas escolas negras sequer tinham carteiras, os alunos tinham que escrever no chão. As 2 imagens no Museu do ‘Apartheid’ (essa e a do caveirão) são de autoria de meus familiares.

– Durbã, 2,7 milhões (3,3 milhões, idem).

Pretória, 1,7 milhão.

Eu pude conhecer todas elas.

………

A África do Sul é uma colcha de retalhos linguística. São nada menos que 11 idiomas oficiais.

O inglês é universal, a ‘língua franca’, o único falado por todos os seus habitantes, de todas as raças.

Nos tempos do ‘apartheid’ eram duas línguas oficiais, as faladas pelos brancos.

Bairro Baía ‘Hout’, extremo sul da Cidade do Cabo. Uma foca bem grande interage com o público, ao fundo a marina e as montanhas.

Além do inglês obviamente o africâner, que é um dialeto do holandês (na verdade se assemelha muito ao holandês medieval).

Ainda hoje o africâner é mais falado que o inglês como língua materna, entre os euro-descendentes.

Com a democracia, os idiomas que os negros usam também ganharam ‘status’ oficial. Embora sejam nove, as mais comuns são o xhosa e o zulu.

Todas moedas da África do Sul trazem no verso a inscrição no nome da nação em duas línguas.

Nas notas está escrito ‘Banco Central da África do Sul’ em inglês na frente (no original ‘Reserve Bank’, ‘Banco da Reserva [Financeira]’ ou ‘Banco do Tesouro’, se preferir. Passei em frente a sede dele em Pretória).

Ir a África do Sul é como ir a Inglaterra. Praça Gandhi, que é o terminal central do Metrobus em Joanesburgo. 2-Andares Volvo Marcopolo de fabricação brasileira se prepara pra levar a galera pros distantes subúrbios da metrópole. Como comentou um colega, “quem anda de busão realmente está subindo na vida, vendo o mundo pelo alto”. Fiz uma matéria completa sobre o transporte na África do Sul, passado e presente, dá uma olhada.

E atrás novamente em 2 línguas:

Na de 10 rands em africâner e uma língua negra, nas demais sempre idiomas nativos africanos.

Entre os brancos, mais gente fala africâner como língua-mãe que inglês.

No entanto quem fala inglês só fala inglês, é mono-língue, não entende nenhum outro idioma.

E isso vale pros negros e brancos.

Assim, os que têm o africâner ou idiomas nativos da África como 1ª língua têm que saber também inglês.

Sejam da raça que for, quando as pessoas estão somente entre os da sua etnia  falam em sua própria língua.

Especialmente em casa, mas também num círculo fechado de amigos.

Templo hindu no Centro de Durbã: visitar a África do Sul é como ir a Índia.

Quando é preciso falar com mais gente, por exemplo no trabalho, todos se comunicam em inglês.

Obviamente, como dito, algumas pessoas brancas e negras já têm essa como língua-mãe, aí a usam mesmo em casa. 

Os que falam africâner se concentram no Costa Ocidental. Na Cidade do Cabo, o africâner é a 1ª língua de nada menos que 22% da população.

A imensa maioria brancos, mas embora mais raro há uns poucos negros que a usam também, pois foram educados nela na época do ‘apartheid’.

A ‘Riviera’ da Cidade do Cabo: ir a África do Sul é como ir as parte mais bonitas do Mediterrâneo (Itália, ou Grécia).

Nessa cidade o inglês predomina amplamente pois é o idioma nativo da maior parte dos negros. Digo, dos ‘mulatos’.

No Oeste da RAS são majoritários os que se auto-denominam ‘mestiços’ ou ‘mulatos’ no censo.

Eles são negros, e assim eram considerados pelo ‘apartheid’, certamente. Mas já houve grande miscigenação entre as diferentes tribos nativas africanas.

Pela mistura, a conexão com as línguas africanas se perdeu, aí eles usam o inglês, praticamente todos, e uns poucos o africâner, como já dito.

‘Woodstoock’, Cidade do Cabo: região de classe média na ladeira, com casinhas geminadas. Na África do Sul você se sente em em São Francisco, Califórnia/EUA.

A língua negra mais falada no Cabo é o xhosa, com apenas 2,7 % da população que a usam em casa.

Já a Costa Oriental sul-africana é território dos ingleses, sempre foi, desde a colonização.

Em Durbã apenas 3% dos habitantes têm o africâner como idioma-materno.

O Leste do país é de maioria negra, inclusive estatisticamente.

Quero dizer com isso que no censo as pessoas se definem assim, como ‘negros’, e não como ‘mulatos’ ou ‘mestiços’.

Bairro ‘Baía do Campo’, Cidade do Cabo. Reduto da elite, com mansões no morro. Eu estava na África do Sul, mas parecia que era em ‘Beverly Hills’ ou ‘Hollywood’, em Los Angeles, também na Califórnia/EUA.

Por isso o zulu é o 1º idioma de um terço da população. Mesmo o xhosa é o escolhido de 6%, mais que o dobro do Cabo.

O Cabo é, definitivamente, a cidade mais integrada racialmente, a mais multi-cultural, da África do Sul e diria de toda África.

Ali, os brancos são 1/3 das pessoas, portanto há inclusive muito mais brancos pobres.

Em Joanesburgo e Durbã os brancos são somente 12 e 15%, respectivamente, aí só numerosos nas classes alta é média-alta.

Bem, em Durbã há quase o dobro de indianos que brancos, pra você ter uma ideia.

Muçulmanas na praia em Durbã. 3 delas estão de burca negra que só mostra os olhos, 1 delas com o rosto a vista. Na África do Sul. Mas se me dissessem que eu estava no Afeganistão não teria como duvidar. Os muçulmanos entram no mar de roupas em Durbã, tanto homens quanto mulheres. Bem, pessoas de outras raças/religiões também fazem o mesmo nessa cidade, é tradição local.

Já veremos como isso se desdobra em outras dimensões. Na linguística, a Cidade do Cabo é a única tri-língue.

As comunicações da prefeitura são em inglês, xhosa e africâner. O lema da cidade é: “Progredindo. Todos Juntos.”

……..

Todos Juntos. Um lema bonito. Evidente que na prática as coisas não são tão simples, ainda há imensos problemas. Mas no passado foi ainda pior.

Como estamos falando do ser humano, que infelizmente sempre foi e ainda é belicoso por natureza, as raças brigam muito.

Tanto umas contra as outras como entre si, dentro de suas próprias etnias.

Na África do Sul não é diferente. Alias, ali foram inventadas duas coisas macabras pra humanidade:

Na África do Sul são os ricos que moram nos morros, como na Califórnia. Os pobres vivem em favelas, conjuntos geminados ou cohabs de pequenos prédios (pombais), a construção varia mas sempre no plano. Porém Durbã é exceção. Há bairros de elite nas encostas, sim. Mas também há muitas favelas, como nas periferias do Rio, SP, BH-MG, Salvador-BA, partes de Curitiba, Colômbia, México, Chile, Bolívia, Peru Venezuela. Durbã é a ‘América na África’ (foto via ‘Google’ Mapas).

O campo de concentração (depois amplamente usado na Europa por Hitler, Stalin e outros);

E o ‘micro-ondas’, quando uma pessoa é presa dentro de pneus encharcados com gasolina sobre os quais é ateado fogo.

Hoje a raça branca já não agride tanto ela mesma:

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial já são 70 anos sem que um país da Europa Ocidental invada outro, fato inédito em sua violenta história.

E bota ‘violenta’ nisso, por milênios culminando a 2ª Guerra os brancos se combateram violentamente entre si, pra ver quem amealhava mais poder sobre os outros.

Não quer dizer que os brancos se tornaram pacíficos, apenas agora eles atacam outras raças, geralmente de países mais fracos que não podem se defender.

Montanha-Mesa, Cidade do Cabo: bondinho sobe um morro famoso, símbolo da cidade e do país. Me lembrei muitíssimo de quando fui ao Rio de Janeiro.

Vide as intervenções dos EUA (em vários casos em conluio com Inglaterra e França) no Iraque, Líbia e Síria.

Mais de 2 milhões morreram nessas guerras, mais de 10 milhões ficaram amputados/ viúvas(os)/órfãos/refugiados internou ou externos.

Então, não, os brancos não passaram a ser brandos. Apenas agora eles agridem aos outros como sempre fizeram, mas entre eles mesmos não mais.

Entretanto no passado não foi assim, a raça branca duelava muito, e de forma muito violenta, inclusive dentro de seus próprios povos.

Golfistas na Zona Norte da Cidade do Cabo. Os ricos da África do Sul adoram golfe, há cem vezes mais campos desse esporte lá que no Brasil. Nos EUA é exatamente igual. É a ‘Anglosfera’.

A África do Sul não passou imune a essa situação.

Desde o século 17 ingleses e holandeses brigaram entre si, e contra os negros nativos, pra poderem dominar o país.

Os negros resistiram bravamente, derrotando os invasores brancos em várias ocasiões.

Porém evidentemente os europeus tinham armas muito, mas muito superiores aos africanos, e acabaram prevalecendo.

Por exemplo, o Rei Zulu Shaka ficou famoso por inventar uma lança afiada.

Gostou da Mercedes da Isabel??? E que tal a do ‘Vegeta‘, que é conversível. O Wilson é mais modesto e se contenta com um modelo mais simples, enquanto no Centro de Durbã alguém está ouvindo ‘Rumores’. Vocês entenderam, né? Na África do Sul, como nos EUA, você pode escolher a placa do teu carro. Tem mais. Lá eles a-d-o-r-a-m Mercedes e BMW, é paixão nacional. Não só os ricos, os pobres também. Veja que na foto maior, aquele belo anoitecer em Joanesburgo, eu também estou numa Mercedes, a estrelinha ressaltada em amarelo. Em outra mensagem falo melhor disso.

Que lhe garantiu a vitória em numerosas batalhas contra outras tribos negras, desprovidas dessa tecnologia (justiça seja feita e não vamos idealizar, a raça negra também massacrou seus próprios irmãos, e infelizmente a situação persiste, como veremos mais adiante).

Mas contra os rifles e canhões brancos suas lanças e escudos pouco puderam fazer, além de retardar um pouco a queda.

Em 1679 foi inaugurado pelos africâneres o forte conhecido como ‘Castelo da Boa Esperança’.

Trata-se da primeira construção europeia na África do Sul, na época a beira-mar, hoje depois de sucessivos aterros está a centenas de metros da orla.

O que garantiu pouco mais de um século de domínio.

Porém em 1795 a Inglaterra exige a rendição da Colônia (holandesa) do Cabo e sua anexação ao Império Britânico.

Os holandeses se negam, e resistem o quanto podem mas o Cabo cai acuado por invasão de enorme esquadra da Real Marinha Inglesa.

Em 1804 a Holanda brevemente retoma o controle, mas dois anos depois em nova invasão a Inglaterra assume em definitivo o comando da Cidade do Cabo e da colônia que o circunda, o que a princípio incluía até a atual Namíbia.

E eis a prova: Atlântida, subúrbio do Extremo Norte na Grande Cid. do Cabo. Moradia muito pobre, mas tem um Mercedes velho na garagem. No Paraguai (e vários páises árabes) a paixão por essa marca é a mesma. Mas tem mais: casa de madeira? E com toras na horizontal? Por acaso viemos parar no Caribe, ou no Sul dos EUA???

Assim os holandeses vão pro interior e ali estabelecem duas repúblicas independentes

Entre os Rios Laranja (‘Oranje’ no original holandês/africâner, a cor da Casa Real Holandesa e daí o uniforme da seleção desse país) e Vaal é criado o ‘Estado Livre Laranja’ (‘Orange Free State’ em inglês).

E após o Rio Vaal a República Sul-Africana, também chamada de ‘República do Transvaal’.

Não confunda, obviamente, a ‘República Sul-Africana’ holandesa/ africâner/boer com o país atual, já vamos chegar lá e ver como a presente República da África do Sul foi formada.

Primeiro voltemos ao século 19. Os holandeses foram derrotados no litoral, perderam o Cabo em 1795 e Natal, do outro lado, já era bastião inglês.

Ainda Atlântida, Cid. do Cabo: residência muito pobre de alvenaria, rua de terra, sozinha no quintal grande, sem laje e sem muro. Me belisca: ou eu estou sonhando ou eu voltei mesmo ao Paraguai!!

Assim migraram e no fundão do interior fundaram suas duas repúblicas independentes que, sendo o ser humano como é, também guerrearam entre si.

Porém o perigo maior estava por vir. Em 1877 a Inglaterra anexa também o Estado Livre Laranja e a República do Transvaal.

Em 1880 os colonizadores ‘boeres’ (holandeses) se revoltam, e estoura a Primeira Guerra Anglo-Boer.

Ela dura apenas 4 meses, até o começo do ano seguinte com vitória boer, as repúblicas holandesas reconquistam a independência.

Não dura muito. Em 1886 é descoberto ouro na região, e daí fundada a cidade de Joanesburgo.

Soweto, Joanesburgo. Favelas com casas de zinco. Me deu a nítida sensação de estar de volta aos morros de Valparaíso, Chile.

Obviamente a Coroa Britânica não vai deixar que outros enriqueçam com o metal. Assim em 1899 se inicia a Segunda Guerra Anglo-Boer.

Agora a luta foi renhida e cruel. A Inglaterra está disposta a ganhar a qualquer custo. E por isso lança mão de uma nova técnica:

Prende a população civil das cidades inimigas conquistadas em campos de concentração, especialmente mulheres e crianças.

Voltamos a Atlântida, Cabo. Mas ‘continuamos no Chile’. Puxadinho no Prédio??? Você já sabe, é a marca registrada da Zona Oeste de Santiago, fotografei vários assim.

Veja mais abaixo a foto (busque pela legenda), tropas inglesas se dirigem com cavalaria e canhões pra ocupar a nascente cidade de Joanesburgo.

Conhecendo a crueldade inglesa, os comandantes de Joanesburgo optam por entregar a cidade sem lutar.

Não teve jeito, a Inglaterra conquistas as repúblicas boêres e unifica a África do Sul sob seu comando, como uma colônia.

Em 1909 é decretada independência formal pelo parlamento inglês, com a consequente criação da União Sul-Africana em 1910.

Plátanos na Zona Norte de Joanesburgo. Na África do Sul você se sente no Canadá ou em partes frias da América do Sul, como Campos do Jordão-SP, S. Catarina, Argentina ou Chile.

Mas a “independência” é apenas no papel, literalmente ‘pra inglês ver’.

A África do Sul continua colônia inglesa, apenas em 1931 vem a independência de fato.

De 1931 a 1960 a África do Sul fica na mesma situação que o Canadá, Austrália e Nova Zelândia estão até hoje: é independente na prática. Mas o chefe de estado ainda é a rainha (ou rei) da Grã-Bretanha.

Em 1960 em plebiscito nacional (apenas os brancos puderam votar) por pequena margem são cortados em definitivo os laços com a Inglaterra.

Casa com dezenas de painéis solares na Zona Norte de Joanesburgo. Na África do Sul o uso da energia do Sol está mil vezes mais avançado que no Brasil. Casas de todas as classes sociais, inclusive cohabs muito pobres (veremos fotos em outra postagem), fazem uso intenso desse modal. Com tanto cuidado com a Natureza, eu me senti na Alemanha.

Proclamada a ‘República da África do Sul’, a monarca em Londres enfim deixa de ser a chefe de estado sul-africano.

A província de Natal (atual Kwa-Zulu/Natal depois da incorporação do bantustão Kwa-Zulu) foi a única a votar ‘não’, pois ali os ingleses sendo maioria queriam permanecer ligados formalmente a Inglaterra.

Alias a rixa entre ingleses e africâneres na África do Sul é antiga. Em tempos passados, resolvida via aprisionamento da população civil rival em campos de concentração.

Hoje a situação é mais pacífica mas um certo ressentimento permanece. 

Derivado de modos diferentes de verem sua permanência na África, uma situação temporária pra uns e permanente pra outros.

Já que é pra falar da vibração Norte-Europeia, segura essa: a costa da Cidade do Cabo já sofreu sucessivos aterros, tomando espaço do mar. Veja essa imagem (desculpe a coluna na frente, eu estava dentro do terminal de ônibus e o painel é fora, não tive como evitar). As ruas são a área urbanizada da cidade em 1884, hoje é cem vezes maior, isso é apenas o Centro atualmente. Aquela estrela bem no meio é o Castelo da Boa Esperança, fortaleza construída pelos holandeses, já explicada acima. Até o fim do século 19 ela ainda era a beira-mar, a costa então era a linha azul-escura. Em 1920 já havia o primeiro aterro, a costa está naquela linha de azul de tom médio. E em 2013 muito mais terra havia sido tomada do Oceano, o terminal que eu estou está identificado por aquele ponto vermelho. Portanto um século atrás eu estaria dentro do mar nesse exato local. É como se eu estivesse na Holanda. Bem, a África do Sul e muito mais a Cidade do Cabo foram colonizados (também) por holandeses.

Explico. Os africâneres chamam os ingleses pejorativamente, perdão pelo termo chulo, de ‘pinto de sal’.

Isso quer dizer o seguinte. Os africâneres se veem como ‘descendentes de holandeses’, e não como ainda sendo holandeses.

Claro que valorizam sua cultura – até demais, tanto que a impuseram a força aos negros por um século.

Acontece que os africâneres cortaram seus laços atuais com a Holanda, com a Europa em geral. Eles agora se definem como sul-africanos.

Já os ingleses se recusam a cortar seus laços com a Inglaterra, e ficam numa ‘lealdade dividida’.

Não sabem ser sul-africanos de corpo & alma, pois ainda querem permanecer súditos da rainha.

Mesmo tendo nascido, sido criados e morado toda vida na África, se recusam a deixar ir seus laços com a ilha do outro lado do planeta da qual vieram seus bisavós.

Por isso têm o, desculpe novamente, ‘pinto de sal’.

Pois segundo os aficâneres, os ingleses ficam com um pé na Europa, outro na África, daí seu genital molha no mar e se torna salgado.

……….

Bem, após a matança da Guerra Anglo-Boer da virada do século 19 pro 20, os brancos entenderam que estavam condenados a viver juntos no mesmo país.

Como já dito, os ricos da África do Sul moram como os dos EUA: em casas (geralmente sobrados) nos subúrbios com calmas ruas sem saída, gramados a frente, se possível sem muro. Aqui é Z/N da Cidade do Cabo, perto da Praia da Lagoa e Praia do Pôr-do-Sol. Note a ausência de calçadas.

Independente de gostar ou não da Inglaterra. Portanto se uniram pra oprimir os negros e demais pessoas “de cor”.

Repito que oficialmente o ‘apartheid’ iniciou em 1948. Mas na prática desde o século 19. Lembre-se:

Quando chegaram a África do Sul vindos da Índia (ambos então parte do Império Britânico) os indianos eram tão pobres quantos os negros nativos.

E tinham os mesmos direitos que eles, ou seja nenhum.

As repúblicas “livres” Laranja e do Transvaal só eram livres pros brancos.

No Transvaal inclusive a lei dizia que não-brancos não podem ocupar cargos nem na administração pública nem nas igrejas.

Em Durbã, garotos de uma escola vão jogar bola na praia. Negros e brancos juntos, pois a legislação racista acabou. Aqui quero chamar a atenção novamente pro fato que na África do Sul os brancos são sempre alvíssimos, pele, olhos e cabelos – todos na foto são loiros! Não são mestiços, morenos como os ‘brancos’ do Sul da Europa e América Latina. Na África do Sul (nesse ponto ao menos) você está no Norte da Europa: Holanda, Alemanha, Inglaterra e Escandinávia.

Os indianos que foram morar no Transvaal tinham por lei que residir em bairros (na verdade favelas) exclusivos pra eles, designados pelas autoridades.

Além disso, eles não podiam trabalhar na mineração, e tampouco andar nas calçadas, tinham que caminhar pelo meio das ruas. E toda essa legislação data de 1885.

No Estado “Livre” Laranja era ainda pior. O governo branco simplesmente baniu a entrada de indianos.

Nenhum indiano podia morar no Estado Laranja, e mesmo pra atravessá-lo de passagem era necessário um visto especial.

Depois que a Inglaterra bateu as repúblicas boêres em 1902 e as incorporou a sua colônia sul-africana a situação permaneceu inalterada.

Cidade Alta’ de Durbã, um bairro (‘Musgrave‘, pronuncia ‘Mâsgreive’) num morro de classe alta e média-alta na Zona Central. Ir a África do Sul é como ir a Alemanha (ou a Joinville-SC). Nem todos os morros de Durbã são tão elitizados, como já vimos acima.

Afinal, mesmo em Natal (que era possessão inglesa) a situação era a mesma.

Ainda em 1888 foram formuladas leis que obrigavam os indianos a terem autorização da polícia (‘passes’) pra circular pela cidade.

E em toda África do Sul, boer ou inglesa, antes ou depois da Guerra Anglo-Boer, as pessoas ‘de cor’ não podiam entrar em diversos locais públicos.

Isso valia pra negros, indianos, chineses e qualquer não-europeu.

Pra você se sentir mesmo no Norte da Europa: comprei na Cidade do Cabo, mas o leite vem escrito em holandês. Na verdade africâner, que oficialmente é uma língua, mas na prática um dialeto do holandês (80% das palavras são idênticas nos dois idiomas, ou tem mínimas diferenças de grafia). 99,99% dos alimentos na África do Sul vem escritos em inglês, que é a língua que todos os seus habitantes (de todas as raças) falam. Muitas vezes em inglês, português e francês pra ser exportado pra toda África. Mas em africâner nenhum, apenas esse laticínio quis ressaltar sua origem dessa forma. As caixinhas de papelão do longa vida são bi-língues inglês e africâner, os saquinhos de plástico são também nos dois idiomas, mas não na mesma embalagem. Cada saquinho é ou em inglês ou africâner.

Eles nem sequer podiam caminhar pelas calçadas, precisavam ir pelo meio da rua com risco iminente de atropelamento.

Muita gente não sabe, mas aquele que foi batizado ao nascer Mohandas Gandhi viveu 21 anos na África do Sul. E foram os primeiros anos de sua vida adulta.

Ali ele iniciou sua luta política, e ali na África do Sul ele se tornou conhecido como ‘Mahatma’ Gandhi.

Uma pista pra quem não conhece a língua sânscrita. ‘Maha’ = ‘Grande’; ‘Atma’ = ‘Alma’. Logo ‘Mahatma’ significa ‘A Grande Alma’, ou se preferir algo similar a ‘Iluminado’, ‘Ungido’, pra usar as terminologias budista e cristã.

Gandhi era de família abastada, por isso na juventude foi estudar advocacia em Londres, nada menos que a capital do império que subjugava tanto a Índia quanto a África do Sul.

Ao retornar formado pra casa, um de seus primeiros trabalhos foi ser enviado a Durbã pra representar alguns ricos comerciantes muçulmanos indianos.

(Algumas notas. A ‘Índia’ de então incluía os atuais Bangladesh e Paquistão, logo muitos eram muçulmanos, situação que ainda persiste até hoje.

A África do Sul tem enorme comunidade muçulmana. Parte dela é formada por imigrantes [negros] de outros países da África, e também por sul-africanos negros convertidos.

Entretanto o grosso é de ‘indianos’, assim chamados, mas se os outros países já fosse independentes seriam conhecidos como bengalis ou paquistaneses.

Assim como no Brasil o termo ‘turco’ se refere basicamente a sírios e libaneses, então sob jugo do Império Otomano [turco]. Em várias partes do mundo as fronteiras de um século e pouco atrás eram diferentes das atuais.

Segundo, embora a imensa maioria dos indianos da África do Sul fosse pobre, evidentemente haviam também representantes da elite, que estavam ali por sua livre vontade.)

Zona Norte, Cidade do Cabo, perto da praia: subúrbio rico na lagoa, cada casa pode ter seu cais e barco particular. Nos EUA (especialmente na Flórida) é assim também.

Gandhi aportou em 1893, pra passar poucos meses. O que ele não sabia é que brevemente um acontecimento mudaria sua vida pra sempre.

E por ele Ser um Grande Avatar da Humanidade por consequência cambiaria também a trajetória do planeta.

Sendo de família de posses, e representando clientes idem, nada mais natural que ele viajasse de primeira classe nos trens.

Porém ainda nesse mesmo ano ele fazia uma viagem ferroviária, quando foi solicitado a sair da primeira classe, por não ser branco.

Eis meu almoço num domingo (de pouco Sol) na Beira-Mar de Durbã: arroz indiano, bastante apimentado. Bota bastante nisso! Na África eu comi como no Sul da Ásia.

Gandhi se recusou, afinal ele pagara a passagem, tanto quanto os euro-descendentes que se incomodaram em sentar ao lado de um asiático. E era advogado, conhecia a lei e seus direitos.

Pois bem. Assim o trem parou e ele foi posto pra fora, simplesmente porque sua pele era escura.

E teve que retornar a pé pra cidade, Pietmaritzburg (que era e ainda é capital de Natal, agora Kwa-Zulu Natal).

Ali morreu Mohandas Gandhi, o advogado que pensava em representar seus clientes, e Nasceu Mahatma Gandhi:

O Avatar cuja missão na Terra era lutar contras as injustiças, onde elas ocorressem. Seu ‘cliente’ a partir dali era a Humanidade.

Logo em frente ao restaurante, no calçadão da ‘Praia Norte’ de Durbã (mais chique que a ‘Praia Sul’, depois explico melhor) você pode andar de riquixá, uma carroça que é puxada não por um animal mas por um ser humano. Antes de domesticarem os cavalos, eram assim que as classes se diferenciavam: os ricos se locomoviam sentados, puxados por outras pessoas. A pequena classe-média e a imensa maioria de pobres andava a pé, enquanto que os miseráveis eram vendidos como escravos e eles quem puxavam os outros. Isso a milênios atrás, então ao ver essa cena eu atravessei um portal não só do espaço mas também do tempo. Trata-se de uma pitada da Índia enxertada na África. Bem, a água que vemos ao fundo é do Oceano Indiano (ou ‘Índico’), então não está tão longe assim. África do Sul, 2017 d.C.. Mas, cá entre nós, parece a Índia 5.000 antes do Cristo.

Tanto que Gandhi já se preparava pra deixar a África do Sul e voltar a Índia em definitivo, em fins do mesmo ano de 1893.

A rica comunidade indiana de Durbã organizou uma festa de despedida.

E ele já estava de malas prontas e passagem de navio comprada pra deixar a África.

Mas informaram Gandhi que o parlamento branco de Natal preparava um pacotaço de leis racista contra os indianos, além das leis que estavam em vigor e não eram poucas.

Pediram a ele que ficasse e liderasse a luta contra a discriminação. Gandhi disse:

“Fico. Contem comigo”. Assim, uma estada de pouco meses se ampliou pra mais de 2 décadas.

Provavelmente Gandhi não teria ficado se não tivesse sido enxotado do trem como um leproso ou um bicho peçoenhento, mesmo tendo direito de ir na 1ª classe.

Ele ficou. A África do Sul mudou Gandhi, e depois ele mudou a África do Sul, a Índia, o Império Britânico e toda Terra.

Pois foi figura-chave no movimento pra Conscientizar as pessoas que era errado nações mais poderosas subjugarem as mais fracas.

Centrão de Joanesburgo: imóvel abandonado todo grafitado com o ‘alfabeto’ criado em Nova Iorque. Se você pensou que estamos no Bronx (bairro pobre e negro dessa cidade ianque, como se sabe), você não está de todo errado. Joanesburgo é a única cidade da África do Sul que tem pichação e grafite, mesmo assim bem menos que na América Latina e EUA. Nas demais metrópoles sul-africanas quase inexistente.

Ainda em Durbã fundou e liderou uma frente de combate ao racismo.

Depois mudou-se pra Joanesburgo, onde organizou uma marcha que serviu de treino pra famosa ‘Marcha do Sal’ feita depois na Índia, que foi a pá de cal no domínio injusto britânico por lá.

Gandhi foi preso 4 vezes na África do Sul, e no total cumpriu 7 meses encarcerado nos presídios sul-africanos.

Foi mais um ensaio pro que viria na Índia, onde ele viveria mais de 3 anos e meio atrás das grades.

……….

Em Durbã, Gandhi foi vizinho de um dos fundadores do Congresso Nacional Africano (CNA, em inglês ANC), John Langalibalele Dube.

“Bronx a Beira-Mar”: continuamos na vibração nova-iorquina. Na África do Sul há favelas e bairros pobres afastados do Centro das cidades (literalmente na ‘periferia’) como na América Latina? Sim, há. Mas também é muito comum o gueto central, modelo que predomina na Europa, EUA e Anglosfera. Fiquei no bairro ‘Praia Sul’, em Durbã. É exatamente esse caso. O prédio que veem na imagem é vizinho ao que me hospedei, mesma quadra. Trata-se de quitinetes pra massa, classe trabalhadora. É integrado, moram brancos, mas imensa maioria de negros e indianos. E, surpresa, na quadra do mar. Na ‘Praia Sul’ não há alta burguesia nem elite, só povão e no máximo pequena burguesia. A ‘Praia Norte’ é mais cara, ali há edifícios de alto padrão. Mas na ‘Praia Sul’ não, é um gueto na orla, daí o apelido que eu dei.

Ambos trocaram muitas ideias e se influenciaram mutuamente.

Afinal tanto indianos quanto negros sofriam da mesma repressão.

Agora, se qualitativamente os migrantes da Ásia igualmente eram discriminados, óbvio que quantitativamente os nativos da África foram as maiores vítimas do regime racista.

Se já existia antes de 1948, a partir dessa data com a oficialização o ‘apartheid’ só veio a piorar.

Entre 1949 e 50 a legislação básica racista foi delineada: foram aprovadas as leis proibiam primeiro casamentos entre brancos e não-brancos, e depois qualquer relação sexual.

As penas de prisão eram de até 7 anos pros membros dos dois sexos.

Acontece que no caso de um homem negro ser apanhado com uma mulher branca, a punição mais provável era mais imediata, o linchamento nas mãos da multidão.

Igualmente veio a lei de ‘classificação populacional’. Cada sul-africano foi enquadrado em uma das 4 categorias, ‘branco’, ‘negro’, ‘mestiço’ ou ‘indiano’.

Na prática a 1ª denominava os brancos, e as outras 3 o que coletivamente eram os ‘não-brancos’.

Eu fui ao Bronx original (NY), em 1996. De volta a África, outra da Praia Sul, Durbã, o “Bronx a Beira-Mar”.  A galera tem que congregar na rua, não há espaços de lazer nem no prédio nem no bairro (exceto o calçadão da orla).

Na teoria todas as raças deveriam permanecer separadas.

Só que o que ocorria era que o estado pouco se importavam quando os não-brancos interagiam entre si.

Apenas o relacionamento entre os brancos e qualquer pessoa ‘de cor’ é que era severamente regulado.

Sempre em favor do branco evidentemente.

Mais do que classificar, a lei estabelecia juridicamente em quis áreas do país cada raça podia viver.

Bairro da elite na Z/N de Joanesburgo, África do Sul. Só mansões residenciais, sem comércio. Detalhe: sem calçadas em qualquer lado da rua. Se você já foi aos EUA, sabe que lá é assim também, esses dois países não são feitos pra andar a pé, só de carro.

Houveram mais de 3 milhões de deslocamentos forçados, quando alguém vivia numa área que foi designada pra outra raça.

As vezes uma família já estava a séculos numa região. Pouco importava.

Policiais fortemente armados apareciam ao amanhecer, todos só tinham tempo de carregar o que pudesse ser levado nas mãos.

A seguir as pessoas eram postas em caminhões e relocadas pra onde o governo determinasse.

A imensa maioria dos relocados eram de negros, mas os indianos também passaram por isso. E houveram raríssimos casos em que alguns brancos também tiveram que se mudar contra a vontade.

Acima falamos em esportes, e em anglosfera. Garotos alvos como a neve jogam ‘rugby’ na praia em Durbã. Se eu estivesse na Inglaterra, Austrália ou Nova Zelândia a cena seria a mesma. Pela herança inglesa, a África do Sul se parece muito até com a Oceania!

Pois suas terras ficaram dentro do território pra onde o governo expeliria os negros após expulsá-los das cidades.

Por exemplo: nenhum negro poderia residir dentro dos limites do município de Joanesburgo.

Exatamente por isso eles se formaram sua base em Soweto (sigla de ‘Assentamento Sudoeste’ em inglês), que era na região metropolitana.

Quando o ‘apartheid’ acabou os municípios foram unificados dentro da mesma prefeitura metropolitana.

E hoje Soweto faz parte de Joanesburgo com muito orgulho, pelo papel ativo que desempenhou na resistência.

Subúrbios elitizados de Joanesburgo: “Estate” significa ‘bairro’. Daí veio o termo ‘Real Estate’, (‘imobiliária’), usado tanto na Inglaterra quanto EUA. Agora, somente ‘Estate’ como ‘bairro’, na Inglaterra e África do Sul sim mas nos EUA não.

(Nota: a África do Sul, como os EUA, tem ativa uma 4ª esfera administrativa que não existe no Brasil, a da ‘prefeitura metropolitana’, o ‘condado’ nos EUA.

No nosso país, existem as ‘regiões metropolitanas’ mas eles não têm administração própria, são os governos estaduais quem cuidam delas, nem sempre de forma eficaz.

Na África do Sul, ao contrário, existe uma esfera de governo específica.

Pois bem. A prefeitura metropolitana de Joanesburgo incorpora Soweto e diversos outros subúrbios [ricos e pobres, majoritariamente negros, brancos ou mistos] sob o mesmo corpo executivo/legislativo.

Assim, Soweto e Joanesburgo, embora permaneçam municípios separados numa esfera menor, fazem parte da mesma cidade mesmo juridicamente. Volta o texto original.)

Mais herança inglesa. Restaurante no Centro de Pretória serve ‘peixe & batatas-fritas‘. O prato mais popular das Ilhas Britânicas também é o preferido de milhões de sul-africanos.

Logo a seguir foram criados os ‘bantustões’, onde os negros deveriam residir, sendo expulsos da África do Sul.

‘Bantu’ é a raiz etno-linguística a que pertencem os negros sul-africanos.

‘Istão’ significa ‘terra’ em persa e idiomas vizinhos, por isso tantos países na Ásia Central se chamam ‘Paquistão’, ‘Afeganistão’, ‘Tajiquistão’, ‘Casaquistão’, etc.

O ‘bantustão’ portanto é a ‘terra dos bantus’, e ali eles devem viver, deixando a África do Sul pros brancos, era a lógica do regime.

A princípio esse era o nome oficial do programa, depois alterado pra ‘terra-natal’.

A ideia inicial dos cabeças do ‘apartheid’ era relocar, amigavelmente ou a força se preciso, todos os negros pra algum dos bantustões.

Agora a herança ianque, Mc Donald’s também no Centro de Pretória. A África do Sul adora a ‘comida-rápida’ dos EUA, todas as cadeias ianques são oni-presentes lá. Especialmente a KFC, que vende frango frito. Como os negros do Caribe e do Sul dos EUA, os sul-africanos amam essa receita. Mas, bem, aí provavelmente foi na mão contrária, os negros de certo já comiam carne de galinha encharcada em muita gordura de má qualidade (o colesterol foi pra estratosfera!) na África antes de virem pra América.

Aí eles exerceriam seus direitos políticos ali, parando de reivindicar o voto ou qualquer outra coisa na África do Sul.

Porém rapidamente a elite branca viu que esse plano não seria possível.

Posto que os brancos são uma pequena parte da população sul-africana, e ainda por cima concentrados na elite.

Logo, a economia sul-africana entraria em colapso sem a mão-de-obra negra, e não iria demorar.

Assim os brancos desistiram de remover a força todos os negros, mas não desistiram de negar-lhes a cidadania sul-africana.

Cada negro foi denominado cidadão de algum dos 10 bantustões, contra sua vontade. E portanto numa canetada deixaram de serem sul-africanos.

A classificação era arbitrária e superficial. Muitos negros foram denominados ‘cidadãos’ de um bantustão que eles não tinham qualquer ligação.

“Velho Oeste Ianque”? Quase! Na verdade Centro de Joanesburgo. Essa também foi uma cidade fundada na ‘Corrida ao Ouro’, que surgiu quando esse metal foi descoberto na região, mais ou menos na mesma época de suas congêneres nos EUA (2ª metade do século 19). O trenzinho da mina está ali pra lembrar essa origem.

Pois eram habitados por tribos diversas da sua. Ao serem removidos pra lá, aí sim eles se tornaram estrangeiros nesse ‘país’. 

País que só existia na cabeça dos que faziam o ‘apartheid’ e de seus colaboradores negros, os caciques da tribos que administravam o bantustão.

Oras, o bem-estar dos negros expulsos da RAS não era o objetivo desse repatriamento, e sim sua desaparição, se não física ao menos política.

Dos milhões de negros que foram relocados a força, centenas de milhares foram pra terras que eles nunca haviam pisado, e onde não tinham nenhum parente.

Dizendo de novo, não por caridade mas por impossibilidade prática o regime cancelou o plano de deportar todos os negros pros bantustões.

Centrão de Durbã (muitos camelôs, falo melhor da região com muitas fotos aqui): propaganda muçulmana escrita – também – em árabe. Aqui a África do Sul lembrou muito a Arábia Saudita.

Mas ainda assim retirou a cidadania sul-africana de todos eles.

Os negros poderiam então continuar vivendo e trabalhando na África do Sul, mas como ‘trabalhadores convidados’.

Precisavam de uma autorização especial pra ter sua casa, que obviamente só poderia ser nos bairros exclusivos pra negros, onde os serviços públicos eram praticamente inexistentes.

Ademais, precisavam de um ‘passe’ expedido pela polícia, e ele só valia pra circularem no bairro que trabalhavam. Camburões da polícia circulavam nos elegantes bairros brancos, exigindo o ‘passe’ dos negros.

Centro Novo da Cidade do Cabo, um bairro planejado que está sendo construído agora pra classe alta e média-alta, no coração da cidade. Me senti de volta a Buenos Aires-Argentina (que visitei 1 mês antes), onde ocorreu exatamente o mesmo com a implantação do Porto Madeiro, 2 décadas atrás. Mas peraí: morar em frente a um canal, onde a rua é água e você chega de barco em casa (como esse rapaz poderia estar fazendo)? Por acaso estamos em Veneza/Itália??? Ou (se você substituir o rio por mar) quem sabe em Bombinhas-SC?

Os que não tinham, ou estava vencido ou fora do território, eram presos imediatamente.

Numa canetada, os negros viraram estrangeiros em seu próprio país, na terra que eles residem a dezenas de milênios.

Além disso, as mulheres negras eram ainda mais perseguidas.

Em muitos casos apenas o marido recebia autorização pra trabalhar, e portanto pra entrar nas cidades.

As esposas e crianças ficavam numa espécie de prisão domiciliar no bantustão.

Mesmo nos poucos bairros urbanos que era autorizada a presença permanente feminina, as mulheres não podiam por lei serem proprietárias de uma casa.

Ou seja, sua presença nas cidades estava condicionada ao casamento, fosse esse bom ou ruim.

Não é segredo pra ninguém que na época a nefasta prática do marido bater na esposa era ainda mais generalizada que hoje.

Bando de aves que me parecem flamingos e pelicanos curtem o Pôr-do-Sol numa das muitas lagoas da Zona Norte da Cidade do Cabo. Haviam várias outras espécies, entre elas um animal rosa lindíssimo, mas essas fotos não focaram, tirei de dentro de um ônibus em alta velocidade e eles estavam distantes. Em outras mensagens solto mais tomadas das aves africanas, inclusive uma bela revoada. Aqui que nos importa é: você está dentro da cidade, mas vê o tempo todo pássaros exóticos em bandos? A África do Sul também tem um pouco da Amazônia.

O que muitas vezes gerava uma escolha difícil as negras:

Ficarem confinadas em áreas rurais remotas onde as oportunidades de renda e educação eram zero, ou morar numa favela ao lado de um marido que abusa delas.

…….

Obviamente a comunidade negra resistiu. Nelson Mandela era sua figura mais emblemática, e por isso ficou 27 anos preso.

Mandela passou muito tempo na solitária, e ele e todos os outros presos eram obrigados a ficar quebrando pedras durante todo dia. Não é figura de linguagem.

Obviamente o trabalho deles não servia pra nada, mas era um fim em si mesmo, o de tornar a vida dos prisioneiros o mais dura possível, literalmente.

Mandela também é um Avatar, uma das ‘Grandes Almas’ da humanidade. Homem inteligente e conciliador, se formou na cadeia num curso a distância promovido por uma universidade inglesa.

Também estudou africâner pra se comunicar com os carcereiros, o que ocasionou em certa simpatia por parte deles.

Já que falamos de nossa Pátria Amada: a África do Sul tem uma relação curiosa com o idioma que usamos aqui. Ninguém fala português lá, exceto imigrantes de ex-colônias lusas na África. Ainda assim, diversas coisas na África do Sul são escritas em português, como se estivéssemos no Brasil. Num muro no Centrão de Durbã (perto da Estação de Trem) alguém pichou “Tem Suicida“. Alguns especularam que foi um moçambicano ou angolano . . .

Mandela prioriza a não-violência, e buscava a colaboração dos brancos que se opunham ao ‘apartheid‘.

Só quer ele entendia também que se o regime repressor fechasse absolutamente todas as portas pra oposição pacífica, um pouco de violência se tornava necessária pra chamar a atenção pras reivindicações e forçar o governo a negociar.

Na prisão Mandela e os membros de seu grupo, o CNA, conviveram com os presos do grupo BPC, a qual Steve Biko pertencia. 

O BPC era mais radical, e rejeitava colaboração com os brancos mesmo que eles se opusessem ao ‘apartheid’, pois segundo Biko isso ‘domesticava a resistência negra’.

Biko negava ser racista anti-branco, teve amigos euro-descendentes incluindo um jornalista que escreveu sua biografia.

. . . mas veja esse prédio. A beira-mar, num dos bairros mais caros da Cidade do Cabo (aqui não é gueto, nem um pouco parecido com a ‘Praia Sul’ de Durbã). Não foi angolano quem nomeou e mora nele, (nada contra os angolanos, você entende o que quero dizer). E mesmo assim o nome está em português. Há muitos outros exemplos, especialmente no ramo da alimentação mas não somente. Em outra postagem mostro mais fotos e falamos melhor da linguística. Aqui o que nos importa é os brasileiros nos sentimos em casa na África do Sul.

Além de ter se relacionado sexualmente com algumas mulheres caucasianas.

Só que ele alegava, não sem razão, que os brancos propunham estratégias muito suaves pra combater o ‘apartheid’, que não faziam sentido aos negros e não iriam aliviar seu problema. Disse Biko:

O branco controla o ‘apartheid’, e pretende através de outra corrente controlar também a luta anti-‘apartheid’.

Assim o negro se torna cada vez mais marginalizado, mesmo dentro do movimento pra derrubar o regime do qual ele é a maior vítima”.

O mesmo Biko arrematou sua filosofia: “o branco liberal não é inimigo, é um amigo. Mas as estratégias de combate dos negros devem ser formuladas pelos próprios negros”.

Mandela, ao contrário, aceitava qualquer ajuda, viesse ela de quem fosse. Mas ele respeitava a posição de Biko e seus camaradas, vendo neles soldados da mesma causa, e tinha também bom relacionamento com eles atrás das grades.

………

Alias nosso país descobriu alguns nichos em que é o que fazemos considerado ‘estado de arte’, a própria excelência, a referência do setor. Famoso é o caso em que academias ao redor do planeta dizem ensinar ‘Jiu-jitsu Brasileiro’, sendo verdade ou não. Numa vibração mais feminina, esse salão de beleza no Centro de Durbã promete deixar as africanas “com o cabelo das brasileiras“. Outros salões prometiam o mesmo na depilação.

Com a prisão de Mandela e outros nos anos 60 a resistência perdeu força. Assim o começo dos anos 70 foi calmo.

Uma calma injusta, claro, os negros escravos dentro de sua própria terra (“paz sem voz não é paz, é medo“, como alguém definiu).

A situação breve se alteraria. A ‘calma injusta’ logo cederia lugar a justa revolta de quem era oprimido em seu próprio continente pelos que vieram de outro continente.

Os negros não tinham mesmo direito a terem aulas em suas línguas nativas.

Ademais, a educação era precaríssima, nem carteiras muitos deles não tinham.

Assim eles queriam ao menos ter as poucas aulas a que tinham direito em inglês.

O regime racista, entretanto, pretendia obrigar a universalização do idioma africâner.

Mesmo contra a vontade dos negros, que viam no africâner a materialização linguística do ‘apartheid’.

Centrinho da ‘Praia Sul’ de Durbã. Repito os detalhes que já apontei acima: 1) Trata-se de um bairro ainda que na orla mas mesmo assim popular, pro povão e não pra burguesia; 2) Durbã tem mais prédios altos que as outras cidades sul-africanas; 3) O inglês na África é britânico, e por isso grafado ‘Centre‘. Nos EUA se escreve ‘Center‘, como você sabe.

Natural, ao impor sua língua a força em outro povo, os boeres queriam mostrar aos negros mais uma vez que eles, os negros, não eram seres humanos.

E assim cada vez que abrissem a boca se lembrariam que eles não podiam sequer escolher a língua com a qual se comunicavam.

Exatamente porque era cruel é que o ‘apartheid’ não abriu mão.

No meio da década o ministério da educação determinou que metade das disciplinas seriam em africâner, quisessem os negros ou não.

Aí atingiu o limite, Soweto explodiu no ‘Motim Linguístico de 76’.

Os estudantes negros se recusaram a ver essas aulas na língua do opressor, daquele que os tornou estrangeiros dentro de seu próprio país.

Ainda Zona Central de Durbã: posto de gasolina embaixo de um prédio. Lá é comum, vi vários. Só presenciei isso em outras duas cidades, Porto Alegre-RS e Buenos Aires. Definitivamente a África do Sul tem também um pezinho na América Latina . . .

E saíram as ruas, bradando “queremos aulas em inglês”, e cantando as músicas de seus povos.

A revolta foi pacífica. Mas a polícia foi chamada e abriu fogo na multidão, matando oficialmente perto de 170 pessoas, várias delas adolescentes.

Números não-oficiais falam em 700 mortos apenas em Soweto, a seguir a revolta se espalhou pelo país com muito mais de mil vítimas fatais.

A África do Sul entrou num turbilhão que não se acalmou mais.

Ufa! Definitivamente a África do Sul é mesmo ‘O Mundo num só País’. Mas pra gente não esquecer que estamos na África, agora vamos ver algumas coisas típicas de lá, ou que existem também em outras partes do 3º Mundo mas certamente na África igualmente. Pra começar: cabras dentro da cidade, nesse caso numa das periferias de Durbã. É a cabra quem mantém a África viva, pois é uma espécie muito resistente, que precisa de pouca água. E tem mil-&-uma-utilidades. Desse animal se extrai comida, couro, meio de transporte, guarda a casa (se invadir seu território eles são bravos como um ‘pit-bull’), fornece renda, companhia e ocupação as pessoas. Nos demais países as África Negra (Senegal, Gana, Botsuana, Lesoto, Suazilândia por exemplo) os caprinos são oni-presentes nos bairros mais humildes, mesmo no Centro das cidades. Quase todas as casas têm um cercadinho pra criação deles. Como a África do Sul é bem mais rica que todos eles, as cabras não passam nem perto das Zonas Centrais das cidades, mesmo os guetos mais pobres. Mas nas favelas mais afastadas do subúrbios as vemos. Aqui no bairro Klaarwater’, um dos morros pobres que cercam Durbã. Vi esses bichos, vivos,  a venda também na Gde. João Pessoa-PB.

Em 1977, Steve Biko foi preso, severamente torturado (permaneceu 20 dias nu e acorrentado, ao ser transferido foi também nu).

A seguir morreu na cadeia em decorrência das lesões.

Os movimentos negros viram que era hora de intensificar as ações, pra forçar a queda do regime.

Ao mesmo tempo, muitos brancos sul-africanos que eram contra o ‘apartheid’ e pessoas de diversas raças em vários países também aumentaram a pressão sobre o governo com ações de conscientização global sobre a injustiça que era a África do Sul.

O regime sentiu os golpes, e partiu pro contra-ataque. Ainda em 1976 decretou a ‘independência’ de 4 dos 10 bantustões.

A partir de agora eles eram oficialmente ‘países independentes’, e ali é que os negros deveriam viver e procurar votar em quem lhes aprouvesse.

Deixando de uma vez de exigir o mesmo da África do Sul, de onde ‘nem eram cidadãos’ segundo o discurso oficial.

Pra reforçar a farsa os cabeças do ‘apartheid’ tiveram a desfaçatez de abrirem embaixadas sul-africanas nas capitais desses ‘países’. Ninguém engoliu.

Nenhuma nação do mundo reconheceu os bantustões como pátrias a parte, todo mundo vendo a jogada pelo que era:

Uma covarde tentativa de mascarar a realidade e adiar o inevitável, que era conceder plenos direitos a população negra.

Pessoas viajando sem proteção nas caçambas. Muito comum na África do Sul, e também no México, Colômbia e República Dominicana. Embora menos frequente, vi e fotografei também na Argentina. No Brasil e Chile, ao menos nas grandes cidades, foi comum no passado, hoje quase não maisainda ocorre mas é raro. Voltando a África do Sul, essa é uma nação de paradoxos. O transporte lá vai desde o mais precário como notam aqui até trens moderníssimos, que não fariam feio no Japão, China, Alemanha ou Suíça.

Outra farsa foi, numa tentativa de ‘dividir pra dominar’, no começo dos anos 80 criar um parlamento ‘tricameral’. Até então o parlamento oficial sempre fora exclusivo branco, não-brancos não podiam votar nem se candidatar.

Como os negros eram maioria da população oprimida, e a resistência ao regime buscava unificar os oprimidos, o ‘apartheid’ criou um ‘parlamento’ pros indianos e outro pros mestiços/mulatos.

Oficialmente ‘negros’, ou os que se definem como ‘mulatos’, na prática são todos negros. E boa parte dos indianos também têm a pele marrom.

Vimos casais inter-raciais em Durbã em que você tinha que ver o cabelo e o nariz pra saber qual dos dois tinha ascendência asiática, e qual africana, pois o tom da tez era sempre bem carregado na melanina.

Mesmo a maioria dos indianos que não são tão escuros quanto os africanos certamente o são muito, mas muito mais pardos que os alvíssimos brancos normandos sul-africanos.

Bairros caros da orla da Cidade do Cabo. ‘Esplanade’ e ‘Promenade’ são palavras do inglês britânico pra designar o que nós chamamos de ‘Beira-Mar’. Por curiosidade, os equivalentes no idioma espanhol: no Paraguai e Argentina o termo é ‘Costanera’, no México ‘Costera’, e no Caribe o ‘Malecón’.

E até o fim dos anos 70, na época já há quase um século portanto, os brancos tratavam todos os não-brancos como um mesmo ‘pacote’, e assim teriam continuado a fazê-lo se dependesse de sua escolha, pois desprezavam todos igualmente.

Agora, com o ‘apartheid’ na defensiva a criação do um ‘parlamento’ de fachada sem qualquer poder real (pros indianos e mulatos sim mas não pros negros) não visava demonstrar qualquer apreço ou mudança de opinião dos brancos sobre aqueles que eles concederam essa ‘bênção’.

Sua jogada intentava apenas dividir a resistência, rachando-a no meio ao isolar os dois grupos ‘agraciados’ dos oficialmente negros.

Na teoria cada parlamento cuidaria dos assuntos relativos a suas respectivas raças – a África do Sul era então parlamentarista, o cargo de presidente era apenas formal. E os assuntos que dissessem respeito ao país como um todo teriam que ser decididos “em conjunto”.

Duas fotos da virada do século 19 pro 20: o escritório de direito do jovem advogado Mahatma Gandhi em Joanesburgo, 1905 (r).

No entanto, através de diversas artimanhas o parlamento dos brancos continuava a ser o único que tinha poder de fato.

Se houvesse consenso se louvava a ‘participação democrática’ de indianos e mestiços.

Todavia em caso de divergências a casa dos caucasianos dava sempre a palavra final no que era importante.

Era outra jogada de cartas marcadas, uma tentativa de se criar um ‘bantustão’ legislativo pros mulatos e indianos, e assim, digo de novo pois é o óbvio, afastá-los da resistência.

Além disso queriam acalmar também os brancos sul-africanos anti-apartheid e a comunidade internacional, dizendo que as ‘reformas’ (que não reformavam nada na prática) haviam ‘se iniciado’. 

Pouco antes, na 2ª Guerra Anglo-Boer, tropas inglesas se dirigem pra ocupar Joanesburgo. Num acordo a cidade se entregou sem resistir, evitando o banho de sangue.

Mais uma vez, não colou. Numa eleição, apenas 6% dos indianos foram votar.

E a nos outros países a pressão pra boicotar a África do Sul só aumentava.

Os grupos negros também partiam pra ações cada vez mais ousadas, incluso com táticas de guerrilha, pra tornar os bairros negros ingovernáveis e forçar mudanças:

Em 1984 explode nova revolta em Soweto.

Cidade do Cabo, oficialmente tri-língue: inglês, xhosa e africâner. Essa é a porta de um ônibus. Inverti a imagem no computador, como nota pela data, senão o resto da foto é quem sairia da direita pra esquerda.

Em desespero, nesse mesmo ano o regime aboliu o parlamentarismo e adotou o presidencialismo.

Onde um homem implanta as ações que achar necessárias sem longas discussões legislativas.

A África do Sul, como dito, era parlamentarista desde a independência da Inglaterra, em 1960. Não mais.

O primeiro-ministro Pieter Williem Botha (conhecido como P.W. Botha) extingue seu próprio cargo e assume a presidência.

Em 1986 decreta estado de emergência. Logo a seguir a força aérea sul-africana bombardeia as capitais dos países vizinhos Zâmbia, Botsuana e Zimbábue, por eles abrigarem exilados sul-africanos que lutavam contra o ‘apartheid’.

Terreno do ‘Forte Velho’ de Durbã, construído pelos ingleses em 1812. Hoje um parque/museu.

Nenhuma dessas ações adianta nada, o momento chegara. As ações do ‘apartheid’ apenas apressam seu fim.

Acuado, Botha desmantela algumas das piores leis racistas, como as que proibiam casamentos e bairros inter-raciais.

Mas lança uma cruzada contra todos os ativistas negros. Milhares de pessoas são presas sem mandato e severamente torturadas.

Mais um casal inter-racial, ele negro ela loirinha. Os pombinhos vinham de mãos dadas, curtindo o belo entardecer a Beira-Mar perto do centro da Cidade do Cabo. Aí ela largou da mão dele pra mexer no celular, daí imagens em duas escalas.

Rotineiramente a polícia abre fogo em manifestantes desarmados, centenas morrem. Ao mesmo tempo, a África do Sul está isolada econômica e culturalmente na comunidade internacional.

O banimento dos times e seleções sul-africanas “exclusivas pra brancos” de qualquer participação internacional esportiva, em todas as modalidades, era uma realidade.

Isso doía na Alma dos atletas. Os brancos provavam de seu próprio remédio, e isso abriu os olhos de muitos deles.

Botha se declara sempre favorável ao ‘apartheid’, que segundo ele faz parte das leis naturais e portanto é permanente, a resistência ao regime é fútil. Mas as coisas saem do controle, inclusive em sua própria saúde.

Praça no Centro de Joanesburgo decorada com estátuas de uma família de veados, me refiro ao bicho claro. Nos detalhes em outra escala: na quadra não há trave, só cestas. Então a galera bate um basquete. E ao fundo enorme bandeira sul-africana que há num prédio, observe no canto de cima direito da imagem maior o azul que compõe a parte interior do pavilhão.

Em 1989, Botha sofre um derrame e é obrigado a sair da presidência. Assume o reformista Frederik de Klerk.

No ano seguinte ele legaliza os grupos de oposição e liberta Mandela, entre outros.

Saturada de um século de opressão sendo meio século de forma aberta, a África do Sul entra em caos.

Grupos de extrema-direita partem pra campanhas terroristas, assassinando ativistas que lutavam pelo fim do regime racista.

As favelas negras entram em um turbilhão de violência que durou uma década, em sua fase mais intensa – porque embora amenizado o problema permanece grave até hoje.

Muita gente não sabe disso, mas os negros sul-africanos adoram futebol. Veja, ainda na mesma praça (note a bandeira ao fundo). Se a quadra não tem trave, eles improvisam um campinho em qualquer espaço vago. O que vale é a bola rolar de pé-em-pé. Muitos, repito, pensam que na África do Sul “o esporte nacional é o ‘rugby’ “. É um clichê, e não poderia ser mais falso. De fato, os brancos gostam, e se dividem entre futebol e ‘rugby’. Porém os negros, que são a imensa maioria do país,  não dão qualquer bola pro ‘rugby’, é só no futeba mesmo.

E como vemos pelas fotos de um livro (levantadas pra página nessa matéria), muitas vezes os negros se matavam entre si de forma feroz, com pedras e pauladas, ou queimando vivos seus adversários.

Eu disse que o ‘micro-ondas’ foi inventado na África do Sul. Ou pelo menos popularizado pro mundo todo lá, trazido de alguma guerra civil da África.

Diante de tantos problemas, de Klerk organiza em 1992 plebiscito pra que a população decida por ela mesma se as reformas devem prosseguir.

Só os brancos podem votar, ainda estamos no ‘apartheid’, mesmo que em seus últimos dias. Botha, seu antecessor na presidência, faz vigorosa campanha pelo ‘não’.

Novamente sai derrotado. Com vitória esmadora do ‘sim’, a abertura prossegue – até porque não há mais como voltar atrás.

O muito ricos (quase todos brancos) jogam também polo. Funcionário apara a grama. Só nesse clube na ‘Riviera do Cabosão 3 campos seguidos, ou seja, tem bastante gente que curte esse esporte elitizado lá. Mas também fala sério: tem coisa melhor que jogar vendo essa água cristalina do Atlântico ao fundo??

Portanto em 27 de abril de 1994 ocorrem as primeiras eleições democráticas.

Mandela é eleito o primeiro presidente democrático da África do Sul, cargo que ocupa até 1999.

………

O ‘apartheid’ político acabou, partido Congresso Nacional Africano de Mandela está no poder desde 94.

O ‘apartheid’ econômico e cultural se amenizou, parte dos negros ascenderam a alta-burguesia.

Tem mais: hoje há bairros com mansões onde eles predominam.

Nota de 100 rands com a inscrição ‘Banco Central da África do Sul’ em 2 idiomas bantus (negros). Acabaram os tempos em que apenas inglês e africâner eram as línguas oficiais.

E as 9 línguas bantus mais populares são idiomas oficiais da África do Sul.

Só que diversos problemas permanecem, não os menores deles índices astronômicos de violência urbana e desigualdade social.

Além disso, em várias cidades os brancos agora se impuseram um ‘auto-apartheid’ e não andam nas ruas do Centro de Durbã e Joanesburgo, ali só vemos pessoas ‘de cor’.

Se tudo fosse pouco, há um novo turbilhão varrendo a nação, alguns querem derrubar o presidente Jacob Zuma, outros querem que ele permaneça até o fim do mandato.

Essa distensão está gerando grande instabilidade política, situação que conhecemos bem no Brasil.

São os desafios do novo milênio, agora sob democracia.

A queda do ‘apartheid’ não foi o fim da luta por uma África do Sul mais justa, mas o começo.

Antiga bandeira sul-africana, vigente no tempo do ‘apartheid’ (r).

Muito resta por fazer. É isso que veremos no próximo texto.

Continua . . . .

……

Outras matérias da série:

América na África (Índia na África também) – é Durbã, de Porto Natal a eThekwini (setembro.18):

Na Cidade do Cabo o atual pavilhão da África do Sul democrática (r).

Se a República Dominicana é a ‘África na América’, Durbã, inversamente, é a ‘América na África’.

Pois se parece mais com as cidades latino-americanas (tem favelas em morros).

Enquanto o resto da África do Sul segue o modelo anglo-ianque  de urbanização.

Ademais, Durbã é a maior diáspora indiana a nível global, a “Índia na África”.

Dentro do camburão em Durbã.

Joanesburgo, a “Metrópole Global Africana” (abril.18):

Gauteng, como dito, é o menor estado (província) da África do Sul. Mas seu centro populacional, econômico e político.

Ali está Joanesburgo, sua maior metrópole, centro financeiro e político do país.

Um pouco mais ao norte fica Pretória, a capital administrativa nacional, que é praticamente um subúrbio do Joanesburgo.

Gautrem em Joanesburgo.

Encanto Multi-Dimensional: a Cidade do Cabo (e do Vinho), um Chacra da Terra (fevereiro.18):

Uma radiografia completa da mais bela cidade da África do Sul, e uma das mais belas do mundo.

Khayelitsha É África: só eu e Deus na “Zona de Perigo” (setembro.17):

Na ‘época do apartheid’ o dinheiro sul-africano vinha somente em inglês e africâner. Essa é de 94, justo o ano de transição pra democracia. No apê que fiquei em Joanesburgo, havia um pote com centenas de moedas e notas, algumas raríssimas, de vários países da África e Ásia. Fotografei e atualizei a matéria sobre a grana..

Eis exatamente a continuação dessa atual matéria que você acabou de ler.

Minhas voltas (sozinho, de transporte público, sem celular, guia ou qualquer proteção exceto a Divina) pelas periferias de Joanesburgo, Cidade do Cabo e Durbã.

Nessa última cidade andei até num camburão policial (foto um pouco mais pra cima).

Da “Guerra dos Táxis” ao Gautrem: (julho.17):  O transporte na África do Sul, da barbárie ao moderníssimo.

Falamos das “Guerras do Transporte” – não é figura de linguagem, o sangue correu e ainda corre.

E também do que funciona exemplarmente, como os ônibus do Cabo e o Gautrem (direita), que liga justamente Joanesburgo e Pretória.

A Riviera do Cabo (maio.17): Ensaio fotográfico mostrando a orla da Zona Sul da Cidade do Cabo.

Que, repito, é uma das cidades mais lindas do mundo, ao lado apenas uma amostra.

E esse é seu pedaço mais encantador. Definitivamente “palavras não são necessárias“.

Gênese Revisitada: o Céu da África (outubro.18): Belas imagens celestes.

Inclui também as flores da África (postagem publicada em junho.18). Essa aqui também é da ‘Riviera do Cabo‘.

“Deus proverá”

2 comentários sobre “África do Sul, o Mundo num só País

  1. Ana de Rosaria disse:

    Ola Maurilio, vou dar me o tempo para ler o teu trabalho, amei.
    Estiveste la de facto , VERDADES Verdadeiras.
    Felizmente se foi o apartheid.

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