Por Maurílio Mendes, O Mensageiro
Publicado em 25 de maio de 2017
Mensagem-Portal sobre a África do Sul (ao fim do texto ancoro as ligações pras demais postagens da série).
Vamos falar sobre a luta secular pra pôr fim ao regime de discriminação racial.
No Novo Milênio, sob democracia, novos desafios:
Imensa maioria das fotos de minha autoria, algumas de meus familiares. As que forem baixadas da internet identifico com um ‘(r)’, de ‘rede’.
PARTE 1: ‘APARTHEID’, INÍCIO E FINAL
A ida a África do Sul foi minha primeira viagem inter-continental. Eu nunca fui a Europa ou a Ásia. Digo, indo a África do Sul de certa forma eu estive também na Inglaterra, Índia e Califórnia/EUA.
Pelo seguinte: a República da África do Sul (abreviada R.A.S.) tem enorme população branca e indiana.
Os descendentes de indianos estão reunidos basicamente em Durbã.
Dos quase 3,5 milhões de habitantes dessa região metropolitana, quase um milhão têm ascendência na Índia (perto de 900 mil pessoas). O que torna Durbã ‘a maior cidade indiana do mundo fora da Índia’.
(Duas notas: 1) a ‘Índia’ da época inclui os atuais Paquistão e Bangladesh, e esses 2 são majoritariamente muçulmanos, já falo mais disso;)
(E 2) anteriormente escrevi errado que eram meio milhão de ‘indianos’ em Durbã. É quase o dobro disso.)
A influência dos europeus é ainda maior. Creio que todos sabem que a África do Sul tem grande população branca. Atualmente (2020) os caucasianos são 10% da população do país, e maioria da classe-média pra cima.
Os brancos já foram muito mais numerosos, entretanto. No fim da década de 70 eram quase 20% (18%, sendo mais exato), e na época eram praticamente a totalidade das pessoas da burguesia e elite.
Por um século ademais eles tiveram hegemonia absoluta na África do Sul impondo o ‘apartheid’ (‘manter separado’ em africâner, ‘heid’ tem raiz parecida com a palavra inglesa ‘hold’).
O regime que oprimiu as outras raças oficialmente começou em 1948, mas na prática desde que os colonizadores europeus pisaram lá em massa, em fins do século 19 – e início dos massacres data do século 17 .
Mais abaixo falamos melhor disso. Aqui, dando essa primeira pincelada, obviamente não é difícil entender que os brancos moldaram a África do Sul a sua imagem e semelhança, em todos as dimensões.
Tem mais: os europeus que foram pra lá são norte-europeus (‘normandos’), bem diferentes física e culturalmente dos sul-europeus (‘latinos’) que povoaram a América Latina.
Os brancos da sul-africanos têm a pele bem alva, quase sem mistura de sangue de outras raças. A maioria das pessoas têm olhos claros, verdes ou azuis.
Urbanisticamente falando, a África do Sul é totalmente parte da Anglosfera: pouca gente mora em prédios altos. Assim as cidades têm pouquíssimos edifícios, geralmente se resumem aos que são comerciais no Centro.
E mais uma leva de prédios residenciais na beira-mar (nas cidades que têm mar, óbvio. As que não têm aí menos prédios ainda).
Os ricos e a burguesia moram em subúrbios exatamente iguais aos dos EUA, só casas em ruas sem-saída, sem comércio na vizinhança.
Tem mais. Na Cidade do Cabo, quem tem dinheiro mora nos morros, os pobres no plano. Como na Califórnia-EUA.
Resumindo: se você esteve nos EUA, você sabe como são as cidades da África do Sul.
Óbvio, na RAS há muitas e muitas favelas miseráveis, nos EUA não. Mas de resto é igual.
Durbã é de certa forma exceção. Digo, ali há também os subúrbios a moda ianque, tanto planos quanto em ladeiras.
Acontece que em Durbã há favelas no morro. Por isso a ‘América na África’.
E existem também muitos prédios altos tanto a beira-mar quanto num morro de classe média-alta bem perto do Centro.
E obviamente a maioria negra e ‘de cor’, livre do ‘apartheid’ há mais de 2 décadas, vem se fazendo ouvir, inclusive economicamente.
Por quase oito décadas os indianos foram tão pobres e explorados quanto os negros nativos.
Desde que foram levados da Índia pra serem semi-escravos do Império Britânico, até o terceiro quarto do século 20.
Mas há 4 décadas os indianos vêm ascendendo muito na escala social.
Eles também sofreram ‘apartheid’. Só que quando o regime racista viu que ia cair, flexibilizou a opressão contra os indianos ainda nos anos 80.
Assim uma massa dos descendentes asiáticos pôde ‘pular o muro’ da discriminação e migrar pros subúrbios que oferecem vida mais confortável. De forma que em Durbã especialmente há uma alta e média-burguesia indiana, há subúrbios de elevado estrato em que eles predominam.
Com a queda do ‘apartheid’ em 1994, vários negros seguiram o mesmo caminho.
Hoje há uma pequena elite e uma numerosa classe média-alta formada por africanos nativos.
É comum subúrbios de ricos a moda ianque habitados por negros, e você os vê aos montes dirigindo os carrões mais caros, BMW’s, Mercedes, Audis, a lista toda.
………..
Ademais, há muitos brancos pobres, de classe trabalhadora. Nas favelas e piores bairros mais afastados a população é 100% de negros. Na elite são 90% brancos.
Ou seja, os extremos são segregados. A classe ‘E’ só tem negros, a classe ‘A’ ainda é um privilégio quase que exclusivo dos brancos.
No entanto toda classe média, as classes ‘B’, ‘C’ e ‘D’, tem gente de todas as raças.
Você vê brancos em serviços braçais/repetitivos, como encanadores, balconistas, que não exigem estudo e pagam pouco.
Se pegar um ônibus pra periferia, você já está nos bairros humildes, onde moram os assalariados em casas e apartamentos simples, desprovidos de qualquer luxo.
E ainda há descendentes de europeus no busão.
Só quando no terminal você troca pro alimentador que vai pras favelas e piores cohabs é que só há negros.
E, repito, o contrário também é verdadeiro, também vemos hoje muitos africanos nativos de pele bem escura em posições de destaque.
Negros morando em mansões que contam com piscinas e com empregadas (também negras, claro) de uniforme.
Observe a foto ao lado, que vale por mil palavras.
……….
A África do Sul tem 55 milhões de habitantes. As 4 maiores cidades são as únicas que ultrapassam 1 milhão.
Eis a população delas, incluindo região metropolitana (censo de 2011, dados do sítio citypopulation.de):
– Joanesburgo, 7,8 milhões (segundo outras fontes, já chega a 10 milhões);
– Cidade do Cabo, 3,4 milhões (4 milhões pela Wikipédia);
– Durbã, 2,7 milhões (3,3 milhões, idem).
– Pretória, 1,7 milhão.
Eu pude conhecer todas elas.
………
A África do Sul é uma colcha de retalhos linguística. São nada menos que 11 idiomas oficiais.
O inglês é universal, a ‘língua franca’, o único falado por todos os seus habitantes, de todas as raças.
Nos tempos do ‘apartheid’ eram duas línguas oficiais, as faladas pelos brancos.
Além do inglês obviamente o africâner, que é um dialeto do holandês (na verdade se assemelha muito ao holandês medieval).
Ainda hoje o africâner é mais falado que o inglês como língua materna, entre os euro-descendentes.
Com a democracia, os idiomas que os negros usam também ganharam ‘status’ oficial. Embora sejam nove, as mais comuns são o xhosa e o zulu.
Todas moedas da África do Sul trazem no verso a inscrição no nome da nação em duas línguas.
E atrás novamente em 2 línguas:
Na de 10 rands em africâner e uma língua negra, nas demais sempre idiomas nativos africanos.
Entre os brancos, mais gente fala africâner como língua-mãe que inglês.
No entanto quem fala inglês só fala inglês, é mono-língue, não entende nenhum outro idioma.
E isso vale pros negros e brancos.
Assim, os que têm o africâner ou idiomas nativos da África como 1ª língua têm que saber também inglês.
Sejam da raça que for, quando as pessoas estão somente entre os da sua etnia falam em sua própria língua.
Especialmente em casa, mas também num círculo fechado de amigos.
Quando é preciso falar com mais gente, por exemplo no trabalho, todos se comunicam em inglês.
Obviamente, como dito, algumas pessoas brancas e negras já têm essa como língua-mãe, aí a usam mesmo em casa.
Os que falam africâner se concentram no Costa Ocidental. Na Cidade do Cabo, o africâner é a 1ª língua de nada menos que 22% da população.
A imensa maioria brancos, mas embora mais raro há uns poucos negros que a usam também, pois foram educados nela na época do ‘apartheid’.
Nessa cidade o inglês predomina amplamente pois é o idioma nativo da maior parte dos negros. Digo, dos ‘mulatos’.
No Oeste da RAS são majoritários os que se auto-denominam ‘mestiços’ ou ‘mulatos’ no censo.
Eles são negros, e assim eram considerados pelo ‘apartheid’, certamente. Mas já houve grande miscigenação entre as diferentes tribos nativas africanas.
Pela mistura, a conexão com as línguas africanas se perdeu, aí eles usam o inglês, praticamente todos, e uns poucos o africâner, como já dito.
A língua negra mais falada no Cabo é o xhosa, com apenas 2,7 % da população que a usam em casa.
Já a Costa Oriental sul-africana é território dos ingleses, sempre foi, desde a colonização.
Em Durbã apenas 3% dos habitantes têm o africâner como idioma-materno.
O Leste do país é de maioria negra, inclusive estatisticamente.
Quero dizer com isso que no censo as pessoas se definem assim, como ‘negros’, e não como ‘mulatos’ ou ‘mestiços’.
Por isso o zulu é o 1º idioma de um terço da população. Mesmo o xhosa é o escolhido de 6%, mais que o dobro do Cabo.
O Cabo é, definitivamente, a cidade mais integrada racialmente, a mais multi-cultural, da África do Sul e diria de toda África.
Ali, os brancos são 1/3 das pessoas, portanto há inclusive muito mais brancos pobres.
Em Joanesburgo e Durbã os brancos são somente 12 e 15%, respectivamente, aí só numerosos nas classes alta é média-alta.
Bem, em Durbã há quase o dobro de indianos que brancos, pra você ter uma ideia.
Já veremos como isso se desdobra em outras dimensões. Na linguística, a Cidade do Cabo é a única tri-língue.
As comunicações da prefeitura são em inglês, xhosa e africâner. O lema da cidade é: “Progredindo. Todos Juntos.”
……..
Todos Juntos. Um lema bonito. Evidente que na prática as coisas não são tão simples, ainda há imensos problemas. Mas no passado foi ainda pior.
Como estamos falando do ser humano, que infelizmente sempre foi e ainda é belicoso por natureza, as raças brigam muito.
Tanto umas contra as outras como entre si, dentro de suas próprias etnias.
Na África do Sul não é diferente. Alias, ali foram inventadas duas coisas macabras pra humanidade:
O campo de concentração (depois amplamente usado na Europa por Hitler, Stalin e outros);
E o ‘micro-ondas’, quando uma pessoa é presa dentro de pneus encharcados com gasolina sobre os quais é ateado fogo.
Hoje a raça branca já não agride tanto ela mesma:
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial já são 70 anos sem que um país da Europa Ocidental invada outro, fato inédito em sua violenta história.
E bota ‘violenta’ nisso, por milênios culminando a 2ª Guerra os brancos se combateram violentamente entre si, pra ver quem amealhava mais poder sobre os outros.
Não quer dizer que os brancos se tornaram pacíficos, apenas agora eles atacam outras raças, geralmente de países mais fracos que não podem se defender.
Vide as intervenções dos EUA (em vários casos em conluio com Inglaterra e França) no Iraque, Líbia e Síria.
Mais de 2 milhões morreram nessas guerras, mais de 10 milhões ficaram amputados/ viúvas(os)/órfãos/refugiados internou ou externos.
Então, não, os brancos não passaram a ser brandos. Apenas agora eles agridem aos outros como sempre fizeram, mas entre eles mesmos não mais.
Entretanto no passado não foi assim, a raça branca duelava muito, e de forma muito violenta, inclusive dentro de seus próprios povos.
A África do Sul não passou imune a essa situação.
Desde o século 17 ingleses e holandeses brigaram entre si, e contra os negros nativos, pra poderem dominar o país.
Os negros resistiram bravamente, derrotando os invasores brancos em várias ocasiões.
Porém evidentemente os europeus tinham armas muito, mas muito superiores aos africanos, e acabaram prevalecendo.
Por exemplo, o Rei Zulu Shaka ficou famoso por inventar uma lança afiada.
Que lhe garantiu a vitória em numerosas batalhas contra outras tribos negras, desprovidas dessa tecnologia (justiça seja feita e não vamos idealizar, a raça negra também massacrou seus próprios irmãos, e infelizmente a situação persiste, como veremos mais adiante).
Mas contra os rifles e canhões brancos suas lanças e escudos pouco puderam fazer, além de retardar um pouco a queda.
Em 1679 foi inaugurado pelos africâneres o forte conhecido como ‘Castelo da Boa Esperança’.
Trata-se da primeira construção europeia na África do Sul, na época a beira-mar, hoje depois de sucessivos aterros está a centenas de metros da orla.
O que garantiu pouco mais de um século de domínio.
Porém em 1795 a Inglaterra exige a rendição da Colônia (holandesa) do Cabo e sua anexação ao Império Britânico.
Os holandeses se negam, e resistem o quanto podem mas o Cabo cai acuado por invasão de enorme esquadra da Real Marinha Inglesa.
Em 1804 a Holanda brevemente retoma o controle, mas dois anos depois em nova invasão a Inglaterra assume em definitivo o comando da Cidade do Cabo e da colônia que o circunda, o que a princípio incluía até a atual Namíbia.
Assim os holandeses vão pro interior e ali estabelecem duas repúblicas independentes.
Entre os Rios Laranja (‘Oranje’ no original holandês/africâner, a cor da Casa Real Holandesa e daí o uniforme da seleção desse país) e Vaal é criado o ‘Estado Livre Laranja’ (‘Orange Free State’ em inglês).
E após o Rio Vaal a República Sul-Africana, também chamada de ‘República do Transvaal’.
Não confunda, obviamente, a ‘República Sul-Africana’ holandesa/ africâner/boer com o país atual, já vamos chegar lá e ver como a presente República da África do Sul foi formada.
Primeiro voltemos ao século 19. Os holandeses foram derrotados no litoral, perderam o Cabo em 1795 e Natal, do outro lado, já era bastião inglês.
Assim migraram e no fundão do interior fundaram suas duas repúblicas independentes que, sendo o ser humano como é, também guerrearam entre si.
Porém o perigo maior estava por vir. Em 1877 a Inglaterra anexa também o Estado Livre Laranja e a República do Transvaal.
Em 1880 os colonizadores ‘boeres’ (holandeses) se revoltam, e estoura a Primeira Guerra Anglo-Boer.
Ela dura apenas 4 meses, até o começo do ano seguinte com vitória boer, as repúblicas holandesas reconquistam a independência.
Não dura muito. Em 1886 é descoberto ouro na região, e daí fundada a cidade de Joanesburgo.
Obviamente a Coroa Britânica não vai deixar que outros enriqueçam com o metal. Assim em 1899 se inicia a Segunda Guerra Anglo-Boer.
Agora a luta foi renhida e cruel. A Inglaterra está disposta a ganhar a qualquer custo. E por isso lança mão de uma nova técnica:
Prende a população civil das cidades inimigas conquistadas em campos de concentração, especialmente mulheres e crianças.
Veja mais abaixo a foto (busque pela legenda), tropas inglesas se dirigem com cavalaria e canhões pra ocupar a nascente cidade de Joanesburgo.
Conhecendo a crueldade inglesa, os comandantes de Joanesburgo optam por entregar a cidade sem lutar.
Não teve jeito, a Inglaterra conquistas as repúblicas boêres e unifica a África do Sul sob seu comando, como uma colônia.
Em 1909 é decretada independência formal pelo parlamento inglês, com a consequente criação da União Sul-Africana em 1910.
Mas a “independência” é apenas no papel, literalmente ‘pra inglês ver’.
A África do Sul continua colônia inglesa, apenas em 1931 vem a independência de fato.
De 1931 a 1960 a África do Sul fica na mesma situação que o Canadá, Austrália e Nova Zelândia estão até hoje: é independente na prática. Mas o chefe de estado ainda é a rainha (ou rei) da Grã-Bretanha.
Em 1960 em plebiscito nacional (apenas os brancos puderam votar) por pequena margem são cortados em definitivo os laços com a Inglaterra.
Proclamada a ‘República da África do Sul’, a monarca em Londres enfim deixa de ser a chefe de estado sul-africano.
A província de Natal (atual Kwa-Zulu/Natal depois da incorporação do bantustão Kwa-Zulu) foi a única a votar ‘não’, pois ali os ingleses sendo maioria queriam permanecer ligados formalmente a Inglaterra.
Alias a rixa entre ingleses e africâneres na África do Sul é antiga. Em tempos passados, resolvida via aprisionamento da população civil rival em campos de concentração.
Hoje a situação é mais pacífica mas um certo ressentimento permanece.
Derivado de modos diferentes de verem sua permanência na África, uma situação temporária pra uns e permanente pra outros.
Explico. Os africâneres chamam os ingleses pejorativamente, perdão pelo termo chulo, de ‘pinto de sal’.
Isso quer dizer o seguinte. Os africâneres se veem como ‘descendentes de holandeses’, e não como ainda sendo holandeses.
Claro que valorizam sua cultura – até demais, tanto que a impuseram a força aos negros por um século.
Acontece que os africâneres cortaram seus laços atuais com a Holanda, com a Europa em geral. Eles agora se definem como sul-africanos.
Já os ingleses se recusam a cortar seus laços com a Inglaterra, e ficam numa ‘lealdade dividida’.
Não sabem ser sul-africanos de corpo & alma, pois ainda querem permanecer súditos da rainha.
Mesmo tendo nascido, sido criados e morado toda vida na África, se recusam a deixar ir seus laços com a ilha do outro lado do planeta da qual vieram seus bisavós.
Por isso têm o, desculpe novamente, ‘pinto de sal’.
Pois segundo os aficâneres, os ingleses ficam com um pé na Europa, outro na África, daí seu genital molha no mar e se torna salgado.
……….
Bem, após a matança da Guerra Anglo-Boer da virada do século 19 pro 20, os brancos entenderam que estavam condenados a viver juntos no mesmo país.
Independente de gostar ou não da Inglaterra. Portanto se uniram pra oprimir os negros e demais pessoas “de cor”.
Repito que oficialmente o ‘apartheid’ iniciou em 1948. Mas na prática desde o século 19. Lembre-se:
Quando chegaram a África do Sul vindos da Índia (ambos então parte do Império Britânico) os indianos eram tão pobres quantos os negros nativos.
E tinham os mesmos direitos que eles, ou seja nenhum.
As repúblicas “livres” Laranja e do Transvaal só eram livres pros brancos.
No Transvaal inclusive a lei dizia que não-brancos não podem ocupar cargos nem na administração pública nem nas igrejas.
Os indianos que foram morar no Transvaal tinham por lei que residir em bairros (na verdade favelas) exclusivos pra eles, designados pelas autoridades.
Além disso, eles não podiam trabalhar na mineração, e tampouco andar nas calçadas, tinham que caminhar pelo meio das ruas. E toda essa legislação data de 1885.
No Estado “Livre” Laranja era ainda pior. O governo branco simplesmente baniu a entrada de indianos.
Nenhum indiano podia morar no Estado Laranja, e mesmo pra atravessá-lo de passagem era necessário um visto especial.
Depois que a Inglaterra bateu as repúblicas boêres em 1902 e as incorporou a sua colônia sul-africana a situação permaneceu inalterada.
Afinal, mesmo em Natal (que era possessão inglesa) a situação era a mesma.
Ainda em 1888 foram formuladas leis que obrigavam os indianos a terem autorização da polícia (‘passes’) pra circular pela cidade.
E em toda África do Sul, boer ou inglesa, antes ou depois da Guerra Anglo-Boer, as pessoas ‘de cor’ não podiam entrar em diversos locais públicos.
Isso valia pra negros, indianos, chineses e qualquer não-europeu.
Eles nem sequer podiam caminhar pelas calçadas, precisavam ir pelo meio da rua com risco iminente de atropelamento.
Muita gente não sabe, mas aquele que foi batizado ao nascer Mohandas Gandhi viveu 21 anos na África do Sul. E foram os primeiros anos de sua vida adulta.
Ali ele iniciou sua luta política, e ali na África do Sul ele se tornou conhecido como ‘Mahatma’ Gandhi.
Uma pista pra quem não conhece a língua sânscrita. ‘Maha’ = ‘Grande’; ‘Atma’ = ‘Alma’. Logo ‘Mahatma’ significa ‘A Grande Alma’, ou se preferir algo similar a ‘Iluminado’, ‘Ungido’, pra usar as terminologias budista e cristã.
Gandhi era de família abastada, por isso na juventude foi estudar advocacia em Londres, nada menos que a capital do império que subjugava tanto a Índia quanto a África do Sul.
Ao retornar formado pra casa, um de seus primeiros trabalhos foi ser enviado a Durbã pra representar alguns ricos comerciantes muçulmanos indianos.
(Algumas notas. A ‘Índia’ de então incluía os atuais Bangladesh e Paquistão, logo muitos eram muçulmanos, situação que ainda persiste até hoje.
A África do Sul tem enorme comunidade muçulmana. Parte dela é formada por imigrantes [negros] de outros países da África, e também por sul-africanos negros convertidos.
Entretanto o grosso é de ‘indianos’, assim chamados, mas se os outros países já fosse independentes seriam conhecidos como bengalis ou paquistaneses.
Assim como no Brasil o termo ‘turco’ se refere basicamente a sírios e libaneses, então sob jugo do Império Otomano [turco]. Em várias partes do mundo as fronteiras de um século e pouco atrás eram diferentes das atuais.
Segundo, embora a imensa maioria dos indianos da África do Sul fosse pobre, evidentemente haviam também representantes da elite, que estavam ali por sua livre vontade.)
Gandhi aportou em 1893, pra passar poucos meses. O que ele não sabia é que brevemente um acontecimento mudaria sua vida pra sempre.
E por ele Ser um Grande Avatar da Humanidade por consequência cambiaria também a trajetória do planeta.
Sendo de família de posses, e representando clientes idem, nada mais natural que ele viajasse de primeira classe nos trens.
Porém ainda nesse mesmo ano ele fazia uma viagem ferroviária, quando foi solicitado a sair da primeira classe, por não ser branco.
Gandhi se recusou, afinal ele pagara a passagem, tanto quanto os euro-descendentes que se incomodaram em sentar ao lado de um asiático. E era advogado, conhecia a lei e seus direitos.
Pois bem. Assim o trem parou e ele foi posto pra fora, simplesmente porque sua pele era escura.
E teve que retornar a pé pra cidade, Pietmaritzburg (que era e ainda é capital de Natal, agora Kwa-Zulu Natal).
Ali morreu Mohandas Gandhi, o advogado que pensava em representar seus clientes, e Nasceu Mahatma Gandhi:
O Avatar cuja missão na Terra era lutar contras as injustiças, onde elas ocorressem. Seu ‘cliente’ a partir dali era a Humanidade.
Tanto que Gandhi já se preparava pra deixar a África do Sul e voltar a Índia em definitivo, em fins do mesmo ano de 1893.
A rica comunidade indiana de Durbã organizou uma festa de despedida.
E ele já estava de malas prontas e passagem de navio comprada pra deixar a África.
Mas informaram Gandhi que o parlamento branco de Natal preparava um pacotaço de leis racista contra os indianos, além das leis que estavam em vigor e não eram poucas.
Pediram a ele que ficasse e liderasse a luta contra a discriminação. Gandhi disse:
“Fico. Contem comigo”. Assim, uma estada de pouco meses se ampliou pra mais de 2 décadas.
Provavelmente Gandhi não teria ficado se não tivesse sido enxotado do trem como um leproso ou um bicho peçoenhento, mesmo tendo direito de ir na 1ª classe.
Ele ficou. A África do Sul mudou Gandhi, e depois ele mudou a África do Sul, a Índia, o Império Britânico e toda Terra.
Pois foi figura-chave no movimento pra Conscientizar as pessoas que era errado nações mais poderosas subjugarem as mais fracas.
Ainda em Durbã fundou e liderou uma frente de combate ao racismo.
Depois mudou-se pra Joanesburgo, onde organizou uma marcha que serviu de treino pra famosa ‘Marcha do Sal’ feita depois na Índia, que foi a pá de cal no domínio injusto britânico por lá.
Gandhi foi preso 4 vezes na África do Sul, e no total cumpriu 7 meses encarcerado nos presídios sul-africanos.
Foi mais um ensaio pro que viria na Índia, onde ele viveria mais de 3 anos e meio atrás das grades.
……….
Em Durbã, Gandhi foi vizinho de um dos fundadores do Congresso Nacional Africano (CNA, em inglês ANC), John Langalibalele Dube.
Ambos trocaram muitas ideias e se influenciaram mutuamente.
Afinal tanto indianos quanto negros sofriam da mesma repressão.
Agora, se qualitativamente os migrantes da Ásia igualmente eram discriminados, óbvio que quantitativamente os nativos da África foram as maiores vítimas do regime racista.
Se já existia antes de 1948, a partir dessa data com a oficialização o ‘apartheid’ só veio a piorar.
Entre 1949 e 50 a legislação básica racista foi delineada: foram aprovadas as leis proibiam primeiro casamentos entre brancos e não-brancos, e depois qualquer relação sexual.
As penas de prisão eram de até 7 anos pros membros dos dois sexos.
Acontece que no caso de um homem negro ser apanhado com uma mulher branca, a punição mais provável era mais imediata, o linchamento nas mãos da multidão.
Igualmente veio a lei de ‘classificação populacional’. Cada sul-africano foi enquadrado em uma das 4 categorias, ‘branco’, ‘negro’, ‘mestiço’ ou ‘indiano’.
Na prática a 1ª denominava os brancos, e as outras 3 o que coletivamente eram os ‘não-brancos’.
Na teoria todas as raças deveriam permanecer separadas.
Só que o que ocorria era que o estado pouco se importavam quando os não-brancos interagiam entre si.
Apenas o relacionamento entre os brancos e qualquer pessoa ‘de cor’ é que era severamente regulado.
Sempre em favor do branco evidentemente.
Mais do que classificar, a lei estabelecia juridicamente em quis áreas do país cada raça podia viver.
Houveram mais de 3 milhões de deslocamentos forçados, quando alguém vivia numa área que foi designada pra outra raça.
As vezes uma família já estava a séculos numa região. Pouco importava.
Policiais fortemente armados apareciam ao amanhecer, todos só tinham tempo de carregar o que pudesse ser levado nas mãos.
A seguir as pessoas eram postas em caminhões e relocadas pra onde o governo determinasse.
A imensa maioria dos relocados eram de negros, mas os indianos também passaram por isso. E houveram raríssimos casos em que alguns brancos também tiveram que se mudar contra a vontade.
Pois suas terras ficaram dentro do território pra onde o governo expeliria os negros após expulsá-los das cidades.
Por exemplo: nenhum negro poderia residir dentro dos limites do município de Joanesburgo.
Exatamente por isso eles se formaram sua base em Soweto (sigla de ‘Assentamento Sudoeste’ em inglês), que era na região metropolitana.
Quando o ‘apartheid’ acabou os municípios foram unificados dentro da mesma prefeitura metropolitana.
E hoje Soweto faz parte de Joanesburgo com muito orgulho, pelo papel ativo que desempenhou na resistência.
(Nota: a África do Sul, como os EUA, tem ativa uma 4ª esfera administrativa que não existe no Brasil, a da ‘prefeitura metropolitana’, o ‘condado’ nos EUA.
No nosso país, existem as ‘regiões metropolitanas’ mas eles não têm administração própria, são os governos estaduais quem cuidam delas, nem sempre de forma eficaz.
Na África do Sul, ao contrário, existe uma esfera de governo específica.
Pois bem. A prefeitura metropolitana de Joanesburgo incorpora Soweto e diversos outros subúrbios [ricos e pobres, majoritariamente negros, brancos ou mistos] sob o mesmo corpo executivo/legislativo.
Assim, Soweto e Joanesburgo, embora permaneçam municípios separados numa esfera menor, fazem parte da mesma cidade mesmo juridicamente. Volta o texto original.)
Logo a seguir foram criados os ‘bantustões’, onde os negros deveriam residir, sendo expulsos da África do Sul.
‘Bantu’ é a raiz etno-linguística a que pertencem os negros sul-africanos.
‘Istão’ significa ‘terra’ em persa e idiomas vizinhos, por isso tantos países na Ásia Central se chamam ‘Paquistão’, ‘Afeganistão’, ‘Tajiquistão’, ‘Casaquistão’, etc.
O ‘bantustão’ portanto é a ‘terra dos bantus’, e ali eles devem viver, deixando a África do Sul pros brancos, era a lógica do regime.
A princípio esse era o nome oficial do programa, depois alterado pra ‘terra-natal’.
A ideia inicial dos cabeças do ‘apartheid’ era relocar, amigavelmente ou a força se preciso, todos os negros pra algum dos bantustões.
Aí eles exerceriam seus direitos políticos ali, parando de reivindicar o voto ou qualquer outra coisa na África do Sul.
Porém rapidamente a elite branca viu que esse plano não seria possível.
Posto que os brancos são uma pequena parte da população sul-africana, e ainda por cima concentrados na elite.
Logo, a economia sul-africana entraria em colapso sem a mão-de-obra negra, e não iria demorar.
Assim os brancos desistiram de remover a força todos os negros, mas não desistiram de negar-lhes a cidadania sul-africana.
Cada negro foi denominado cidadão de algum dos 10 bantustões, contra sua vontade. E portanto numa canetada deixaram de serem sul-africanos.
A classificação era arbitrária e superficial. Muitos negros foram denominados ‘cidadãos’ de um bantustão que eles não tinham qualquer ligação.
Pois eram habitados por tribos diversas da sua. Ao serem removidos pra lá, aí sim eles se tornaram estrangeiros nesse ‘país’.
País que só existia na cabeça dos que faziam o ‘apartheid’ e de seus colaboradores negros, os caciques da tribos que administravam o bantustão.
Oras, o bem-estar dos negros expulsos da RAS não era o objetivo desse repatriamento, e sim sua desaparição, se não física ao menos política.
Dos milhões de negros que foram relocados a força, centenas de milhares foram pra terras que eles nunca haviam pisado, e onde não tinham nenhum parente.
Dizendo de novo, não por caridade mas por impossibilidade prática o regime cancelou o plano de deportar todos os negros pros bantustões.
Mas ainda assim retirou a cidadania sul-africana de todos eles.
Os negros poderiam então continuar vivendo e trabalhando na África do Sul, mas como ‘trabalhadores convidados’.
Precisavam de uma autorização especial pra ter sua casa, que obviamente só poderia ser nos bairros exclusivos pra negros, onde os serviços públicos eram praticamente inexistentes.
Ademais, precisavam de um ‘passe’ expedido pela polícia, e ele só valia pra circularem no bairro que trabalhavam. Camburões da polícia circulavam nos elegantes bairros brancos, exigindo o ‘passe’ dos negros.
Os que não tinham, ou estava vencido ou fora do território, eram presos imediatamente.
Numa canetada, os negros viraram estrangeiros em seu próprio país, na terra que eles residem a dezenas de milênios.
Além disso, as mulheres negras eram ainda mais perseguidas.
Em muitos casos apenas o marido recebia autorização pra trabalhar, e portanto pra entrar nas cidades.
As esposas e crianças ficavam numa espécie de prisão domiciliar no bantustão.
Mesmo nos poucos bairros urbanos que era autorizada a presença permanente feminina, as mulheres não podiam por lei serem proprietárias de uma casa.
Ou seja, sua presença nas cidades estava condicionada ao casamento, fosse esse bom ou ruim.
Não é segredo pra ninguém que na época a nefasta prática do marido bater na esposa era ainda mais generalizada que hoje.
O que muitas vezes gerava uma escolha difícil as negras:
Ficarem confinadas em áreas rurais remotas onde as oportunidades de renda e educação eram zero, ou morar numa favela ao lado de um marido que abusa delas.
…….
Obviamente a comunidade negra resistiu. Nelson Mandela era sua figura mais emblemática, e por isso ficou 27 anos preso.
Mandela passou muito tempo na solitária, e ele e todos os outros presos eram obrigados a ficar quebrando pedras durante todo dia. Não é figura de linguagem.
Obviamente o trabalho deles não servia pra nada, mas era um fim em si mesmo, o de tornar a vida dos prisioneiros o mais dura possível, literalmente.
Mandela também é um Avatar, uma das ‘Grandes Almas’ da humanidade. Homem inteligente e conciliador, se formou na cadeia num curso a distância promovido por uma universidade inglesa.
Também estudou africâner pra se comunicar com os carcereiros, o que ocasionou em certa simpatia por parte deles.
Mandela prioriza a não-violência, e buscava a colaboração dos brancos que se opunham ao ‘apartheid‘.
Só quer ele entendia também que se o regime repressor fechasse absolutamente todas as portas pra oposição pacífica, um pouco de violência se tornava necessária pra chamar a atenção pras reivindicações e forçar o governo a negociar.
Na prisão Mandela e os membros de seu grupo, o CNA, conviveram com os presos do grupo BPC, a qual Steve Biko pertencia.
O BPC era mais radical, e rejeitava colaboração com os brancos mesmo que eles se opusessem ao ‘apartheid’, pois segundo Biko isso ‘domesticava a resistência negra’.
Biko negava ser racista anti-branco, teve amigos euro-descendentes incluindo um jornalista que escreveu sua biografia.
Além de ter se relacionado sexualmente com algumas mulheres caucasianas.
Só que ele alegava, não sem razão, que os brancos propunham estratégias muito suaves pra combater o ‘apartheid’, que não faziam sentido aos negros e não iriam aliviar seu problema. Disse Biko:
“O branco controla o ‘apartheid’, e pretende através de outra corrente controlar também a luta anti-‘apartheid’.
Assim o negro se torna cada vez mais marginalizado, mesmo dentro do movimento pra derrubar o regime do qual ele é a maior vítima”.
O mesmo Biko arrematou sua filosofia: “o branco liberal não é inimigo, é um amigo. Mas as estratégias de combate dos negros devem ser formuladas pelos próprios negros”.
Mandela, ao contrário, aceitava qualquer ajuda, viesse ela de quem fosse. Mas ele respeitava a posição de Biko e seus camaradas, vendo neles soldados da mesma causa, e tinha também bom relacionamento com eles atrás das grades.
………
Com a prisão de Mandela e outros nos anos 60 a resistência perdeu força. Assim o começo dos anos 70 foi calmo.
Uma calma injusta, claro, os negros escravos dentro de sua própria terra (“paz sem voz não é paz, é medo“, como alguém definiu).
A situação breve se alteraria. A ‘calma injusta’ logo cederia lugar a justa revolta de quem era oprimido em seu próprio continente pelos que vieram de outro continente.
Os negros não tinham mesmo direito a terem aulas em suas línguas nativas.
Ademais, a educação era precaríssima, nem carteiras muitos deles não tinham.
Assim eles queriam ao menos ter as poucas aulas a que tinham direito em inglês.
O regime racista, entretanto, pretendia obrigar a universalização do idioma africâner.
Mesmo contra a vontade dos negros, que viam no africâner a materialização linguística do ‘apartheid’.
Natural, ao impor sua língua a força em outro povo, os boeres queriam mostrar aos negros mais uma vez que eles, os negros, não eram seres humanos.
E assim cada vez que abrissem a boca se lembrariam que eles não podiam sequer escolher a língua com a qual se comunicavam.
Exatamente porque era cruel é que o ‘apartheid’ não abriu mão.
No meio da década o ministério da educação determinou que metade das disciplinas seriam em africâner, quisessem os negros ou não.
Aí atingiu o limite, Soweto explodiu no ‘Motim Linguístico de 76’.
Os estudantes negros se recusaram a ver essas aulas na língua do opressor, daquele que os tornou estrangeiros dentro de seu próprio país.
E saíram as ruas, bradando “queremos aulas em inglês”, e cantando as músicas de seus povos.
A revolta foi pacífica. Mas a polícia foi chamada e abriu fogo na multidão, matando oficialmente perto de 170 pessoas, várias delas adolescentes.
Números não-oficiais falam em 700 mortos apenas em Soweto, a seguir a revolta se espalhou pelo país com muito mais de mil vítimas fatais.
A África do Sul entrou num turbilhão que não se acalmou mais.
Em 1977, Steve Biko foi preso, severamente torturado (permaneceu 20 dias nu e acorrentado, ao ser transferido foi também nu).
A seguir morreu na cadeia em decorrência das lesões.
Os movimentos negros viram que era hora de intensificar as ações, pra forçar a queda do regime.
Ao mesmo tempo, muitos brancos sul-africanos que eram contra o ‘apartheid’ e pessoas de diversas raças em vários países também aumentaram a pressão sobre o governo com ações de conscientização global sobre a injustiça que era a África do Sul.
O regime sentiu os golpes, e partiu pro contra-ataque. Ainda em 1976 decretou a ‘independência’ de 4 dos 10 bantustões.
A partir de agora eles eram oficialmente ‘países independentes’, e ali é que os negros deveriam viver e procurar votar em quem lhes aprouvesse.
Deixando de uma vez de exigir o mesmo da África do Sul, de onde ‘nem eram cidadãos’ segundo o discurso oficial.
Pra reforçar a farsa os cabeças do ‘apartheid’ tiveram a desfaçatez de abrirem embaixadas sul-africanas nas capitais desses ‘países’. Ninguém engoliu.
Nenhuma nação do mundo reconheceu os bantustões como pátrias a parte, todo mundo vendo a jogada pelo que era:
Uma covarde tentativa de mascarar a realidade e adiar o inevitável, que era conceder plenos direitos a população negra.
Outra farsa foi, numa tentativa de ‘dividir pra dominar’, no começo dos anos 80 criar um parlamento ‘tricameral’. Até então o parlamento oficial sempre fora exclusivo branco, não-brancos não podiam votar nem se candidatar.
Como os negros eram maioria da população oprimida, e a resistência ao regime buscava unificar os oprimidos, o ‘apartheid’ criou um ‘parlamento’ pros indianos e outro pros mestiços/mulatos.
Oficialmente ‘negros’, ou os que se definem como ‘mulatos’, na prática são todos negros. E boa parte dos indianos também têm a pele marrom.
Vimos casais inter-raciais em Durbã em que você tinha que ver o cabelo e o nariz pra saber qual dos dois tinha ascendência asiática, e qual africana, pois o tom da tez era sempre bem carregado na melanina.
Mesmo a maioria dos indianos que não são tão escuros quanto os africanos certamente o são muito, mas muito mais pardos que os alvíssimos brancos normandos sul-africanos.
E até o fim dos anos 70, na época já há quase um século portanto, os brancos tratavam todos os não-brancos como um mesmo ‘pacote’, e assim teriam continuado a fazê-lo se dependesse de sua escolha, pois desprezavam todos igualmente.
Agora, com o ‘apartheid’ na defensiva a criação do um ‘parlamento’ de fachada sem qualquer poder real (pros indianos e mulatos sim mas não pros negros) não visava demonstrar qualquer apreço ou mudança de opinião dos brancos sobre aqueles que eles concederam essa ‘bênção’.
Sua jogada intentava apenas dividir a resistência, rachando-a no meio ao isolar os dois grupos ‘agraciados’ dos oficialmente negros.
Na teoria cada parlamento cuidaria dos assuntos relativos a suas respectivas raças – a África do Sul era então parlamentarista, o cargo de presidente era apenas formal. E os assuntos que dissessem respeito ao país como um todo teriam que ser decididos “em conjunto”.
No entanto, através de diversas artimanhas o parlamento dos brancos continuava a ser o único que tinha poder de fato.
Se houvesse consenso se louvava a ‘participação democrática’ de indianos e mestiços.
Todavia em caso de divergências a casa dos caucasianos dava sempre a palavra final no que era importante.
Era outra jogada de cartas marcadas, uma tentativa de se criar um ‘bantustão’ legislativo pros mulatos e indianos, e assim, digo de novo pois é o óbvio, afastá-los da resistência.
Além disso queriam acalmar também os brancos sul-africanos anti-apartheid e a comunidade internacional, dizendo que as ‘reformas’ (que não reformavam nada na prática) haviam ‘se iniciado’.
Mais uma vez, não colou. Numa eleição, apenas 6% dos indianos foram votar.
E a nos outros países a pressão pra boicotar a África do Sul só aumentava.
Os grupos negros também partiam pra ações cada vez mais ousadas, incluso com táticas de guerrilha, pra tornar os bairros negros ingovernáveis e forçar mudanças:
Em 1984 explode nova revolta em Soweto.
Em desespero, nesse mesmo ano o regime aboliu o parlamentarismo e adotou o presidencialismo.
Onde um homem implanta as ações que achar necessárias sem longas discussões legislativas.
A África do Sul, como dito, era parlamentarista desde a independência da Inglaterra, em 1960. Não mais.
O primeiro-ministro Pieter Williem Botha (conhecido como P.W. Botha) extingue seu próprio cargo e assume a presidência.
Em 1986 decreta estado de emergência. Logo a seguir a força aérea sul-africana bombardeia as capitais dos países vizinhos Zâmbia, Botsuana e Zimbábue, por eles abrigarem exilados sul-africanos que lutavam contra o ‘apartheid’.
Nenhuma dessas ações adianta nada, o momento chegara. As ações do ‘apartheid’ apenas apressam seu fim.
Acuado, Botha desmantela algumas das piores leis racistas, como as que proibiam casamentos e bairros inter-raciais.
Mas lança uma cruzada contra todos os ativistas negros. Milhares de pessoas são presas sem mandato e severamente torturadas.
Rotineiramente a polícia abre fogo em manifestantes desarmados, centenas morrem. Ao mesmo tempo, a África do Sul está isolada econômica e culturalmente na comunidade internacional.
O banimento dos times e seleções sul-africanas “exclusivas pra brancos” de qualquer participação internacional esportiva, em todas as modalidades, era uma realidade.
Isso doía na Alma dos atletas. Os brancos provavam de seu próprio remédio, e isso abriu os olhos de muitos deles.
Botha se declara sempre favorável ao ‘apartheid’, que segundo ele faz parte das leis naturais e portanto é permanente, a resistência ao regime é fútil. Mas as coisas saem do controle, inclusive em sua própria saúde.
Em 1989, Botha sofre um derrame e é obrigado a sair da presidência. Assume o reformista Frederik de Klerk.
No ano seguinte ele legaliza os grupos de oposição e liberta Mandela, entre outros.
Saturada de um século de opressão sendo meio século de forma aberta, a África do Sul entra em caos.
Grupos de extrema-direita partem pra campanhas terroristas, assassinando ativistas que lutavam pelo fim do regime racista.
As favelas negras entram em um turbilhão de violência que durou uma década, em sua fase mais intensa – porque embora amenizado o problema permanece grave até hoje.
E como vemos pelas fotos de um livro (levantadas pra página nessa matéria), muitas vezes os negros se matavam entre si de forma feroz, com pedras e pauladas, ou queimando vivos seus adversários.
Eu disse que o ‘micro-ondas’ foi inventado na África do Sul. Ou pelo menos popularizado pro mundo todo lá, trazido de alguma guerra civil da África.
Diante de tantos problemas, de Klerk organiza em 1992 plebiscito pra que a população decida por ela mesma se as reformas devem prosseguir.
Só os brancos podem votar, ainda estamos no ‘apartheid’, mesmo que em seus últimos dias. Botha, seu antecessor na presidência, faz vigorosa campanha pelo ‘não’.
Novamente sai derrotado. Com vitória esmadora do ‘sim’, a abertura prossegue – até porque não há mais como voltar atrás.
Portanto em 27 de abril de 1994 ocorrem as primeiras eleições democráticas.
Mandela é eleito o primeiro presidente democrático da África do Sul, cargo que ocupa até 1999.
………
O ‘apartheid’ político acabou, partido Congresso Nacional Africano de Mandela está no poder desde 94.
O ‘apartheid’ econômico e cultural se amenizou, parte dos negros ascenderam a alta-burguesia.
Tem mais: hoje há bairros com mansões onde eles predominam.
E as 9 línguas bantus mais populares são idiomas oficiais da África do Sul.
Só que diversos problemas permanecem, não os menores deles índices astronômicos de violência urbana e desigualdade social.
Além disso, em várias cidades os brancos agora se impuseram um ‘auto-apartheid’ e não andam nas ruas do Centro de Durbã e Joanesburgo, ali só vemos pessoas ‘de cor’.
Se tudo fosse pouco, há um novo turbilhão varrendo a nação, alguns querem derrubar o presidente Jacob Zuma, outros querem que ele permaneça até o fim do mandato.
Essa distensão está gerando grande instabilidade política, situação que conhecemos bem no Brasil.
São os desafios do novo milênio, agora sob democracia.
A queda do ‘apartheid’ não foi o fim da luta por uma África do Sul mais justa, mas o começo.
Muito resta por fazer. É isso que veremos no próximo texto.
……
Outras matérias da série:
– América na África (Índia na África também) – é Durbã, de Porto Natal a eThekwini (setembro.18):
Se a República Dominicana é a ‘África na América’, Durbã, inversamente, é a ‘América na África’.
Pois se parece mais com as cidades latino-americanas (tem favelas em morros).
Enquanto o resto da África do Sul segue o modelo anglo-ianque de urbanização.
Ademais, Durbã é a maior diáspora indiana a nível global, a “Índia na África”.
– Joanesburgo, a “Metrópole Global Africana” (abril.18):
Gauteng, como dito, é o menor estado (província) da África do Sul. Mas seu centro populacional, econômico e político.
Ali está Joanesburgo, sua maior metrópole, centro financeiro e político do país.
Um pouco mais ao norte fica Pretória, a capital administrativa nacional, que é praticamente um subúrbio do Joanesburgo.
– Encanto Multi-Dimensional: a Cidade do Cabo (e do Vinho), um Chacra da Terra (fevereiro.18):
Uma radiografia completa da mais bela cidade da África do Sul, e uma das mais belas do mundo.
– Khayelitsha É África: só eu e Deus na “Zona de Perigo” (setembro.17):
Eis exatamente a continuação dessa atual matéria que você acabou de ler.
Minhas voltas (sozinho, de transporte público, sem celular, guia ou qualquer proteção exceto a Divina) pelas periferias de Joanesburgo, Cidade do Cabo e Durbã.
Nessa última cidade andei até num camburão policial (foto um pouco mais pra cima).
– Da “Guerra dos Táxis” ao Gautrem: (julho.17): O transporte na África do Sul, da barbárie ao moderníssimo.
Falamos das “Guerras do Transporte” – não é figura de linguagem, o sangue correu e ainda corre.
E também do que funciona exemplarmente, como os ônibus do Cabo e o Gautrem (direita), que liga justamente Joanesburgo e Pretória.
– A Riviera do Cabo (maio.17): Ensaio fotográfico mostrando a orla da Zona Sul da Cidade do Cabo.
Que, repito, é uma das cidades mais lindas do mundo, ao lado apenas uma amostra.
E esse é seu pedaço mais encantador. Definitivamente “palavras não são necessárias“.
– Gênese Revisitada: o Céu da África (outubro.18): Belas imagens celestes.
Inclui também “as flores da África“ (postagem publicada em junho.18). Essa aqui também é da ‘Riviera do Cabo‘.
“Deus proverá”
Ola Maurilio, vou dar me o tempo para ler o teu trabalho, amei.
Estiveste la de facto , VERDADES Verdadeiras.
Felizmente se foi o apartheid.
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Deus a Ilumine. Pena que não pude visitar Moçambique também.
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