Por Maurílio Mendes, O Mensageiro
Publicado em 5 de setembro de 2017
Maioria das imagens batida pessoalmente por mim (incluso essa ao lado, dentro do camburão da polícia em Durbã – não é brincadeira nem montagem!)
As que forem baixadas da internet identifico com um ‘(r)’, de ‘rede’.
……
Galera, custou mas solto mais uma matéria. E não qualquer uma, vamos relatar minhas voltas na ‘Zona Vermelha’ da África do Sul.
PARTE 2: DEMOCRACIA – MAS O PAÍS AINDA SANGRA
Bota ‘vermelha’ nisso. Na África do Sul a violência urbana está na estratosfera, exatamente como no Brasil.
Em 2015 a Cidade do Cabo teve mais de 2,4 mil assassinatos. São 3,7 milhões de habitantes, portanto taxa de 65 por 100 mil.
O Cabo é uma cidades mais lindas do mundo. Fiz duas matérias sobre ela, uma radiografia completa com dezenas de fotos e texto longo sobre todos os seus bairros, Centro, periferia e burguesia; e a outra um ensaio fotográfico na sua parte mais rica e mais bela, a “Riviera do Cabo”.
É bela mas é fera. Cenários cinematográficos convivem com cenas de terror, número de homicídios dignos de uma guerra, também uma das mais violentas do planeta, ao lado de Fortaleza-CE e Maceió-AL no Brasil, Baltimore, Detroit e Nova Orleans nos EUA, e várias metrópoles da Colômbia, Venezuela, México e América Central.
Joanesburgo e Durbã estão um pouco menos pior. A violência ainda é altíssima, em ambas além de 30 por 100 mil.
O que as coloca próximas ou um pouco acima do que acontece em Belo Horizonte-MG, Curitiba, Porto Alegre-RS, e o Rio de Janeiro (Ressalto que os dados que eu tenho do Rio são de 2014, e infelizmente houve piora de 3 anos pra cá).
Tudo somado, vemos que África do Sul e Brasil estão empatados nessa triste competição. O pânico que as pessoas sentem aqui e lá também é o mesmo.
Andei até de camburão em Durbã, e está relacionado a esse pavor da violência. Mas já chegamos lá. Vamos antes fazer uma recapitulação de como a coisa atingiu nesse ponto:
O ‘apartheid’ oficialmente durou de 1948 a 1994, menos de meio século. Mas na prática 1 século inteiro.
Desde que os brancos pisaram lá, em fins do século 19, existiram leis que proibiam os não-brancos (negros, indianos, chineses) de ocuparem cargos públicos e no clero.
Em alguns lugares os não-brancos não podiam nem mesmo usar as calçadas, tinham que andar pelo meio das ruas dividindo espaço com os carros.
E numa república africâner (o Estado Livre Laranja, holandês, que depois virou um estado da África do Sul quando os ingleses invadiram) os indianos não podiam sequer residir. O Estado era ‘Livre de Indianos’.
Somente pra eles atravessarem o estado de passagem já era necessário um visto especial.
Inclusive foi por causa disso que Gandhi (sim, ‘aquele’ Gandhi) viveu 21 anos na África do Sul.
E ali começou sua militância – o plano inicial era ficar apenas uns meses e não se envolver com política.
Entretanto ele se envolveu porque já havia ‘apartheid’, embora sem esse nome.
Nesses 3 exemplos acima estou falando da virada do século 19 pro 20, meio século antes do ‘apartheid’ oficial portanto.
Claro, depois que esse veio, aí tudo piorou de vez.
Contei essa história com muito mais detalhes em matéria específica.
Aqui o que nos importa é: por todo século 20 os negros (e também os indianos) resistiram ao regime racista.
Nos anos 60 o CNA (Congresso Nacional Africano) iniciou uma ofensiva capitaneada por Nélson Mandela.
Claro, logo esse grande líder (que depois viria a ser o primeiro presidente negro sul-africano) foi preso, junto com outros cabeças da resistência negra.
Assim a primeira metade dos anos 70 foi calma. Uma calma injusta, óbvio, os negros como escravos em sua própria terra.
“Paz sem voz não é paz, é medo”, como alguém bem definiu.
Em 1976 explode a ‘Revolta Estudantil de Soweto’, Joanesburgo. A partir daí a África do Sul nunca mais se acalmou.
E já se vão 41 anos no momento que levanto essa matéria pro ar. Em 1984 nova revolta eclode. Assim, na segunda metade dos anos 80 a coisa explode de vez.
O ‘apartheid’, na pessoa do presidente P. W. Botha, abole algumas leis racistas, como por exemplo a que proibia casamentos inter-raciais, e a que impedia negros de possuírem casas na maior parte do território sul-africano.
Em compensação, o regime racista parte pra ofensiva total contra a resistência negra.
Internamente milhares sobre milhares de ativistas são presos e severamente torturados, dezenas ou mesmo centenas assassinados.
Externamente, a Força Aérea Sul-Africana bombardeia vários países vizinhos, que abrigavam células de grupos políticos banidos na África do Sul.
Não adianta nada, a hora chegara. Em 1989 Botha, o “Grande Crocodilo” como era chamado, é afastado, por problemas de saúde.
Assume em seu lugar Frederico De Klerk (eu aportugueso os nomes sempre que possível, lembre-se). Ele inicia o desmantelamento do ‘apartheid‘:
Solta Mandela e vários outros presos políticos, legaliza os sindicatos, partidos e demais organizações negras, e prepara o caminho pra democracia.
A extrema-direita dos brancos racistas reage, e inicia uma campanha de terrorismo pra frear a abertura.
De Klerk, pra não levar a culpa sozinho caso a nação fosse esfacelada num banho de sangue, consulta a população num plebiscito (exclusivo pra brancos) se a transição deve continuar.
Felizmente a maioria dos brancos sul-africanos estavam cansados do ‘apartheid’, e referenda nas urnas a iniciativa de De Klerk.
Assim o processo segue, e culmina na eleição de Mandela pra presidente em 1994.
Tudo isso já contei com mais detalhes antes, repetindo. O que é relevante pro nosso tema de hoje:
Na virada pros anos 90 os negros perdem a paciência de vez, e também partem pra ofensiva final.
Intensificam as ações políticas pra queda do ‘apartheid’, o que é excelente e justíssimo, óbvio.
É cristalinamente evidente que um povo oprimido tem todo o direito de lutar pra romper seus grilhões.
Porém há um efeito colateral: no ano de 1990 os negros iniciam uma guerra entre si. A África do Sul tem diversas tribos africanas na composição de sua população.
Basta dizer que são 11 línguas oficiais, o inglês e o africâner (dialeto do holandês) de origem europeia, as demais 9 são africanas nativas (todas elas agora representadas no dinheiro da nação).
Então são várias etnias de negros. Mas as duas principais são o Zulu e o Xhosa.
E na reta final do ‘apartheid’, os negros compreensivelmente estavam no limite, por isso zulus e xhosas iniciam uma guerra uns contra os outros.
Sim, negros contra negros. A coisa foi muito sangrenta.
Houveram fins-de-semana em que os mortos se contaram as dezenas em cada uma das muitas favelas de Joanesburgo e demais cidades do país.
Sim, os negros também combateram as tropas do ‘apartheid’, óbvio. Mas igualmente se combateram entre si, encarniçadamente.
Eu não conhecia os detalhes dessa história, se quer saber. Mas no apartamento que eu fiquei em Joanesburgo havia um livro, chamado “O Clube do Bangue-Bangue” (‘The Bang-Bang Club’, no original).
Foi escrito por 2 fotojornalistas. Eles e outros 2 cobriram a guerra na África do Sul nos últimos 4 anos do ‘apartheid’ (1990/1994).
Um deles foi morto com um tiro exatamente no meio dessa guerra, com um tiro numa rua de Joanesburgo, em 1994.
Outro se afastou, se eu não me engano acabou se suicidando, não tenho certeza. O fato que ele saiu do grupo.
Sobraram 2, que escreveram o livro, publicando fotos de autoria dos 4 que trabalharam juntos no período crítico.
Eu não pude ler o livro, não houve tempo. A obra é extensa, e fiquei apenas 4 dias nesse apê, andando pelas ruas quase o tempo todo.
Se eu fosse dedicar o tempo necessário pra apreciar esse relato, não poderia eu mesmo ter feito minhas próprias investigações de campo.
Paciência. Se um dia achar esse livro no Brasil, ou na internet, o lerei. Lá na África não teve como.
Fotografei as imagens mais impactantes, e as reproduzo aqui.
Por essas chocantes cenas nós captamos o grau de ferocidade que foi liberado nas ruas sul-africanas no ocaso desse regime racista que jamais deveria ter existido pra conversa começar.
Muito sangue correu, tanto no enfrentamento de negros contra brancos, como dos próprios negros entre si.
O choque político entre as raças não existe mais. O ‘apartheid’ acabou. Os negros estão no poder político.
E uma porção significativa da população nativa de pele escura ascendeu a burguesia, há hoje bairros de elite habitados majoritariamente por negros.
No entanto as favelas ainda são 100% negras. Ou 98%.
Há algumas favelas formadas por brancos, mas são raríssimas. No geral elas são quase sempre reservadas aos de pele escura.
Compõe o problema que a África do Sul, sendo o país mais desenvolvido da África, recebe imigrantes ilegais de todo continente.
A convivência entre estrangeiros e sul-africanos nem sempre é pacífica, criou-se aí mais um foco de tensão de negros x negros.
A classe média é integrada, desde a classe média-baixa até na média-alta há negros e brancos (em Durbã também indianos).
A elite ainda é majoritariamente branca, e há sim brancos pobres (especialmente na Cidade do Cabo), embora minoria.
Ou seja, os brancos sul-africanos ainda detém grande parte dos privilégios econômicos que amealharam em um século de hegemonia tirânica.
Ainda assim, a população branca sul-africana vem diminuindo, vários estão emigrando pra diversas partes da anglosfera (EUA, Inglaterra, Austrália).
Seja como for, criou-se uma acomodação entre negros e brancos. Malgrado a tensão política, não há derramamento de sangue atualmente.
O mesmo não se pode dizer entre os próprios negros. Entenda, não é uma questão racial, e sim social.
Não estou sendo racista, e dizendo que o branco é mais pacífico, exatamente o contrário é verdadeiro.
Primeiro, a raça branca é quem comanda o capitalismo global, e é a raça branca quem mata milhões em suas guerras de pilhagem mundo afora.
Apenas no Iraque foram mais de 2 milhões de mortos contando desde 1991 (alguns falam em 3), e no Vietnã mais de 4 milhões, pra citar apenas 2 guerras de agressão dos EUA.
Segundo, os brancos já se mataram muito entre si, na Europa e em toda parte. A história da Europa é de grande derramamento de sangue, até a Segunda Guerra Mundial.
Apenas nas últimas décadas os europeus se acalmaram um pouco e não se matam tanto entre si.
Agora dirigem suas baterias contra países mais fracos que não podem se defender, como fizeram com a Líbia em 2011.
Além disso, no Sul do Brasil é sabido que a periferia das grandes e médias cidades têm enorme contingente de euro-descendentes.
E ali brancos matam brancos com a mesma frequência que negros matam negros na África do Sul.
O mesmo ocorre nos EUA, milhares de caucasianos são assassinados todo ano por outros caucasianos.
No passado, brancos guerrearam entre si de forma absolutamente brutal, na Europa e também na África.
Se alguém não sabe, foram os ingleses quem inventaram o campo de concentração. E inventaram na África do Sul, prendendo os holandeses na ‘Guerra dos Bôeres‘.
Prendendo os civis, eu digo. homens não-combatentes e mulheres. A mãe de P. W. Botha (penúltimo [e ultra-racista] presidente branco sul-africano) foi encarcerada pelo Exército Britânico num campo de concentração.
Mesmo sendo do sexo feminino e não tomando parte nos combates. Ao lado dela foram outras dezenas de milhares.
Mesmo na África do Sul contemporânea, os brancos ainda cometem assassinatos entre si. Quando estava na Cidade do Cabo, a mídia sensacionalista deva grande destaque ao julgamento de um sul-africano de ascendência europeia.
Ele era acusado de ter chacinado toda sua família – com golpes de machado, nada menos. O para-atleta caucasiano sul-africano André Pistorious também foi condenado e preso por matar sua igualmente alvíssima namorada.
Escrevi todos os parágrafos acima pra mostrar que não, eu não sou racista. Não estou dizendo que os de pele clara são pacíficos ou civilizados, e que os de pele escura são brutalizados por serem instintivos.
É uma questão social, e não racial. Onde brancos habitam em grande número as favelas, se matam entre si em profusão, por exemplo aqui em Curitiba.
E nos bairros negros da alta-burguesia, na África do Sul ou toda parte, os homicídios são raríssimos quando não inexistentes.
Claro, também não estou dizendo que quem tem dinheiro é mais evoluído espiritualmente, porque o contrário geralmente é que é verdadeiro.
Quem acompanha meus textos há mais tempo sabe muito bem o que penso das Oligarquias, a ianque e todas as outras.
Apenas é um fato, os barões oligacarcas muitas vezes eliminam outros seres humanos, mas rarissimamente o fazem com as próprias mãos.
Podemos discutir filosoficamente as razões disso, mas não podemos negar que é assim.
As vezes acontece, recentemente os casos Nardoni e em 1988 o da ‘Rua Cuba’ no Brasil e o próprio Pistorious na África do Sul são as exceções que confirmam a regra.
Com essas poucas exceções, os bairros ricos e de classe média-alta quase não têm assassinatos, no continente do mundo que forem e habitados por qualquer raça.
Enquanto que as favelas e guetos são quase sempre violentos, em toda parte e independente do tom de pele majoritário.
……….
Desculpe toda essa justificativa, é só pra que não tenham a impressão errada e achem que sou racista ou qualquer coisa do tipo. Eu não sou. Apenas analiso os fatos. E os fatos são:
As favelas e periferias da África do Sul estão imersas em um banho de sangue.
O que começou como uma rebelião contra o ‘apartheid’ rapidamente desandou pra um violento acerto de contas entre as tribos negras, processo que embora amainado ainda não terminou.
Some-se a isso a violência comum, “que não envolve política”. Entre aspas porque todo processo social é político.
Quando países como África do Sul e Brasil (e boa parte da América Latina e também dos EUA) se tornam extramente violentos, as causas são políticas, e a solução também o será.
Ainda assim, por “não envolver política” eu digo por não envolver grupos e objetivos políticos, apenas quadrilhas comuns brigando por butins ou territórios.
Ou então cidadãos trabalhadores mas que quando embriagados/drogados matam suas esposas ou outros homens no bar por motivos fúteis.
O resultado é esse aqui: Cidade do Cabo, 2.451 homicídios em 2015. Com uma população de 3,7 milhões, dá 65 mortes/ano por 100 mil moradores. Índices de guerra.
Nesse caso é a população da ‘prefeitura metropolitana’. A divisão política da África do Sul é diferente da nossa, lá há 4 esferas de governo, e não 3 como aqui.
O que seria o ‘condado’ dos EUA na África do Sul tem sua própria gestão, a ‘prefeitura metropolitana’ que citei acima.
Joanesburgo, 4,4 milhões, teve 1.344 mortes intencionais no mesmo ano, 30 por 100 mil.
Nesse caso não inclui toda região metropolitana, pois a Grande Joanesburgo já tem quase 10 milhões, bem mais de 8 com certeza.
Durbã teve 1.237 assassinatos no período. Com 3,4 milhões na ‘prefeitura metropolitana’ de eThekwini, temos 35 pra 100 mil.
(Nota: eis o nome nativo pra ‘Durbã‘, assim mesmo, com a inicial minúscula e a letra maiúscula no meio da palavra, obviamente a gramática zulu é bem diferente da ocidental.)
Todas as grandes cidades sul-africanas são bastante violentas. Vou analisar só as 3 maiores. Vejamos como a coisa oscilou no decorrer das últimas décadas.
Primeiro, houve uma reversão de polaridade. Historicamente, entre as 3, Joanesburgo sempre foi a mais violenta, desde a era do ‘apartheid‘.
E a Cidade do Cabo a mais calma. Agora houve uma inversão, como vimos.
Durbã, por outro lado, estava em segundo antes, e se mantém. As pontas é que trocaram de lado.
E crítica como a coisa está, já foi pior. A virada dos 80 pros 90, o apagar das luzes do ‘apartheid’, marcou a explosão da violência, que se manteve e se acentuou no mandato de Nélson Mandela.
Quando virou o milênio, Durbã tinha mais que o dobro, quase o triplo da violência atual. Chegou a registrar 80 assassinatos por 100 mil habitantes.
Ou seja, está crítico mas já foi muito, mas muito pior, calamitoso no sentido exato do termo.
A mesma redução se deu em Joanesburgo. Já o Cabo ainda está por dar esse passo, ali a violência está no pico, infelizmente.
………
Comparemos com o Brasil, nesse caso os dados são de 2014:
Proporcional a população, 73 por 100 mil, pior que a África do Sul.
Maceió é um pouco menos pior, 69/100 mil. No ano anterior fora mais sinistro.
Em 13 a capital de Alagoas teve nada menos que a pavorosa taxa de 81 assassinatos pra cada 100 mil habitantes.
Salvador em 14 teve 1.397 casos. Como a população é bem maior que a de Fortaleza, ficou em 48 por 100 mil.
Em 2013 a capital da Bahia havia virado acima de 50.
Em São Luiz do Maranhão em 2013 foram quase 70 mortos por 100 mil habitantes, em 14 houve boa redução pra 61.
Ainda assim, apenas um pouco a menos que o aquilo que a Cidade do Cabo teve no ano seguinte.
Em Curitiba em 2014 houveram 30 mortes por 100 mil moradores. Índice altíssimo, apenas um pouco melhor que na África do Sul. Mas que já foi bem mais macabro.
No ano de 2010 Curitiba teve 979 assassinatos, o que fez com que o número por 100 mil ficasse em 55 (breve levanto pra rede levantamento detalhado desse desastroso período):
Atrás apenas de Maceió, João Pessoa-PB, Vitória-ES, Recife-PE e São Luiz.
Alias Maceió em 2010 virou acima de 100 por 100 mil, ou seja, eram tantas mortes lá que de cada mil maceioenses mais de um foi assassinado naquele ano.
Até a Força Nacional Federal teve que intervir pra baixar um pouco essa carnificina.
No Sudeste, Belo Horizonte teve 24 de seus moradores assassinados pra cada grupo de 100 mil em 2014, no Rio foram 20.
Embora lamentavelmente na capital carioca tenha havido novo aumento de lá pra cá.
E São Paulo hoje é a capital menos violenta do Brasil, pelo menos no quesito de um ser humano tirar intencionalmente a vida de outro.
Foram 1.360 desses crimes em 2014. Mas divididos por 11 milhões de habitantes vemos que o índice é 11 por 100 mil, número que não faria feio na Europa.
Nota: eu sei, em termos de roubos a maior metrópole brasileira continua violentíssima. Eu sei. Aqui falo somente do quesito de assassinatos.
Não é agradável quando alguém lhe tira seus bens de forma violenta – definitivamente não é.
Ainda assim é óbvio que ter a oportunidade encarnatória interrompida violentamente é bem mais traumático.
Então embora falte muito por fazer, precisamos reconhecer que pelo menos nesse ponto importantíssimo houve avanços.
Não apenas em São Paulo, diversas cidades brasileiras hoje estão mais calmas em relação aos anos 90 e 2000, mas SP teve a maior redução.
A capital paulista já teve 5 mil assassinatos por ano, hoje fica pouco acima do 1º milhar.
Bem, teve menos assassinatos que Durbã, cuja população é mais de 3 vezes menor.
……….
Portanto essa é a situação. O Sul, Sudeste e Centro-Oeste Brasileiros são violentos, mas um pouco melhores que a África do Sul.
Enquanto que o Norte e Nordeste de nossa pátria têm no geral índices similares as maiores metrópoles sul-africanas.
Curiosamente, hoje a periferia da Cidade do Cabo é bem mais sangrenta que as de Durbã e Joanesburgo. Mas seu Centro é mais civilizado.
A Cidade do Cabo é cidade mais integrada da África do Sul. No Cabo você brancos aos montes no Centro. Aos montes.
Não apenas o brancos ainda moram no Centro, como também trabalham ali, e não têm medo de sair as ruas.
Em Pretória, ainda que em escala menor, a situação se repete. Retratei na foto acima a direita.
Já em Joanesburgo e Durbã é completamente o oposto. Não há brancos nos Centrões de Joanesburgo e Durbã. Não há, simplesmente não há. Zero, nada, nenhum.
Logicamente toda regra tem exceção. Se você for muitas vezes ao Centro dessas metrópoles, muito de vez em quando você vai trombar com um euro-descendente, é evidente.
Vai acontecer, não é proibido, então a norma não é absoluta. Mas será raríssimo, é mais fácil você achar uma nota elevada de dinheiro que uma família de brancos no núcleo central dessas metrópoles.
Digo, há alguns sem-teto brancos, especialmente em Durbã. A imensa maioria dos sem-tetos sul-africanos são negros, eu diria que 95%.
Porém há alguns caucasianos. Fotografei uma mulher sem-teto que dormia numa praia da Cidade do Cabo, viram acima.
Porém, digo ainda mas uma vez, em Durbã foi a cidade que mais vi moradores de rua euro-descendentes, de pele alva. Vários.
Inclusive eu andava por uma rua da parte barra-pesada do Centrão de Durbã, e um sem-teto branco, sem que eu pedisse, veio me orientar:
“Não entre nessa rua, é muito perigoso”, ele apontou numa direção na esquina. “Muito perigoso”, enfatizou.
Além dele, vi outros mendigos caucasianos nessa cidade, um deles morava sob as marquises no mesmo bairro que ficamos.
Claro, mesmo em Durbã a imensa maioria dos que não têm casa são negros. Apenas ali há uma minoria significativa de brancos, que não vi nas outras cidades.
Isso estou falando de moradores de rua. Eles são (praticamente) os únicos brancos no Centrão de Durbã.
As praias de Durbã são plenamente integradas, negros, brancos, indianos, todos estão ali, incluso há casais inter-raciais.
Estava num restaurante da orla de Durbã, e era curioso. Nas próximas 4 mesas haviam 2 famílias de negros, 1 de brancos e 1 de indianos.
Nas areias, dentro d’água e no calçadão todos convivem em plena harmonia.
Fotografei a direita uma escola particular que levou seus alunos de pele alvíssima pra uma aividade a beira-mar.
Por outro lado, no Centrão, só negros e indianos, nenhum branco (exceto sem-tetos, aqui não me refiro a eles).
Joanesburgo não tem mar, então não vi nenhum branco no Centro, nem mesmo dormindo nas ruas.
E, sim, boa parte do Centrão de Joburgo está bem detonado, ali nem os negros de classe média vão, só a ralé.
Vou explicar pra vocês entenderem. O Centrão de Joanesburgo pode ser dividido em 2 partes, Centro Velho e Centro Novo.
O Centro Velho é horroroso. Um gueto enorme. Muito lixo nas ruas, muito crime, forte cheiro de urina em algumas partes, casas e prédios abandonados, vários deles invadidos.
Camelôs, confusão total. Ali, repito, nem mesmo os negros que são de classe média têm coragem de frequentar. É só povão mesmo, muitos deles nem são sul-africanos:
Nigerianos principalmente, mas imigrantes também de vários outros países africanos tomaram conta de vários quarteirões pra si.
Em muitas ocasiões a convivência com os sul-africanos não é pacífica, diversas campanhas contra a xenofobia tentam pacificar os ânimos, nem sempre com sucesso.
Já o Centro Novo de Joanesburgo é limpo e civilizado. Hotéis, restaurantes e comércio sofisticados garantem uma freguesia requintada:
Homens e mulheres em roupas e carros caros. Ali, os camelôs são proibidos, e os garis deixam ruas e jardins impecáveis.
Só que mesmo nessa parte agradável e mais segura não há brancos, só negros.
E não é que não existam brancos na Grande Joanesburgo. Ao contrário, são 1,5 milhão de homens e mulheres de ascendência europeia.
Isso se você aceitar a cifra de 10 milhões de habitantes, que eu acho que é correta.
É que os brancos de Joanesburgo se impuseram um auto-‘apartheid’:
Vivem e trabalham nos subúrbios a moda ianque nas Zonas Norte e Leste da cidade, deixando o Oeste, Sul e o Centro pros negros.
(Nota: não muito diferente dos brancos de Acapulco. Os ricos – única classe social que os brancos são maioria no México – moram e trabalham nos subúrbios próximos ao aeroporto.
Acapulco é uma baía cercada e portanto emoldurada por uma serra. A elite mora ‘do outro lado do morro’, e jamais cruza a montanha.
Pra não se misturar com o povão, que tem pele bem escura mas não como afro-descendente, e sim índios, amero-descendente.)
Atravessamos o Oceano de novo, de volta a Joburgo. Não por acaso ‘SoWeTo’ é a sigla em inglês pra ‘South-Western Townshp’ (Assentamento Sudoeste).
Pois no ‘apartheid’ o Sul e o Oeste eram onde moravam os africanos nativos.
Mas na época do regime racista, os brancos trabalhavam no Centro, pois a polícia altamente militarizada ‘mantinha os negros no seu lugar’.
Depois da democratização essa intensa repressão não foi mais possível, os negros tomaram posse de suas cidades e passaram a usufruir mais o Centrão.
Antes eles trabalhavam ali, mas qualquer aglomeração de negros fora do local de trabalho era debandada de forma rápida pelas forças de segurança. Agora os africanos nativos são livres pra circularem e se associarem onde e como quiserem. Em ‘retaliação’, hoje são os brancos quem não pisam mais por ali.
Sim, com a ascensão de uma recém-surgida alta-burguesia negra, as mesmas divisões de classe surgiram dentro da raça negra:
Os mais ricos ficam de um lado do Centro, os mais pobres junto com os imigrantes de outros países da África de outro.
A cor da pele pode ser a mesma, mas como a classe é diferente, fica cada um na sua, num ‘mini-apartheid’ interno.
Mas em relação aos brancos a divisão espacial é ainda mais acentuada. Se entre negros pobres e ricos cada um fica no seu lugar no Centro, os brancos não vão mais ao Centro, enfatizo ainda mais uma vez.
Os brancos atualmente trabalham em Sandton, um subúrbio da Zona Norte a moda ianque que é o ‘Novo Centro’ de Joburgo, ao menos pros de pele clara.
Evidente, há negros em Sandton também, agora não se pode mais impedir a entrada deles em qualquer parte. Mas ali ainda há maioria branca.
No Centrão, seja na parte limpa ou na suja, não há brancos, digo de novo pra encerrarmos Joanesburgo. Agora, no Centrão do Cabo há, e aos montes.
Pelo que lhe falei, Joburgo e Durbã são segregadas. Não legalmente, e agora invertido. Os brancos podem ir ao Centro se quiserem, mas preferem ‘não, obrigado‘.
Viajei por via aérea de Joanesburgo a Durbã. No avião e no aeroporto, os brancos eram maioria.
Pois entre a classe média-alta nessas duas cidades os euro-descendentes ainda são maioria, embora não mais oni-presentes como antes.
Apenas optaram pela auto-segregação. ‘Consciência pesada deles’, me disseram os negros quando perguntei do tema.
A Cidade do Cabo não é segregada, disse tudo isso pra chegar a esse ponto.
Os brancos não apenas trabalham no Centro, como transitam sem medo pelas ruas. Mais: eles ainda moram nas imediações.
Coloco isso porque os brancos vão as praias do Centro de Durbã, mas não residem nem remotamente perto. Vão de carro.
No Centro do Cabo é diferente. Digo, a maior parte dos de pele clara moram em subúrbios segregados – não politicamente mas em termos econômicos:
Não é proibido por lei um negro morar nesse bairros de elite. Simplesmente a maioria deles não têm dinheiro pra fazê-lo.
Então, retomando, boa porção da classe média euro-descendente vive em subúrbios afastados, e, sim, se locomovem de automóvel até seus escritórios no Centro.
Mas não todos. Está sendo feito um bairro pra ricos, muito parecido com o Porto Madeiro de Buenos Aires, se você conhece a capital argentina.
São elegantes prédios com canais artificiais entre eles, o que permite aos moradores remarem estando literalmente na porta de suas casas. Uma ‘Veneza (Itália) moderna’.
Os brancos sul-africanos adoram caiaques, se você não sabe. Vi vários praticando esse esporte, nas praias do Cabo e Durbã, e nos subúrbios abastados de todas as cidades.
Pois bem. A Cidade do Cabo não apenas é a menos segregada de todas, como ela quer des-segredar ainda mais.
Por isso está fazendo esse bairro pra elite, em pleno Centro. Como a elite ainda é majoritariamente branca, isso mostra que o Cabo quer mais brancos em seu Centro.
Vamos colocar de forma mais apropriada: não é uma questão de raça, mas de classe. O Cabo quer os ricos morando no Centro. Uma boa parcela deles serão brancos.
Acontece que com o crescimento expressivo da alta-burguesia negra (que tende a aumentar e se consolidar nas próximas décadas) vários dos habitantes desses prédios de luxo serão negros.
Segregação econômica sem dúvidas, pois a África do Sul é 3º Mundo.
Mas racial não. Se você pode pagar, brancos, negros, mulatos, indianos, orientais, todos são bem-vindos ao Centro do Cabo.
É a situação ideal? Óbvio que não. Mas considere o passado da África do Sul (em que a lei separava brancos de negros, mestiços e indianos, com privilégios pros primeiros).
E compare com as outras cidades sul-africanas atuais (auto-segregação imposta pelos brancos).
Além disso, por seguir o modelo de urbanização ianque, geralmente os ricos e a classe-média alta moram muito longe do Centro, e só se locomovem de automóvel.
Ali no Cabo estão atraindo pessoas que, ao contrário, muitos deles darão prioridade pro deslocamento a pé, de bicicleta e mesmo de ônibus. Sim, existe a segregação econômica.
Porém sem segregação racial nem espacial, gente com bastante dinheiro de todas as raças vai a pé trabalhar, pois é só atravessar a rua. Os tons de pele convivem e não queimam carbono.
Dentro das atuais condições, é um avanço. Não podemos deixar a utopia travar o avanço do que é possível nesse momento. Pois esse avanço será a semente de avanços maiores no futuro.
O Centrão da Cidade do Cabo tem partes complicadas, claro, é uma metrópole conturbada e injusta de 3º Mundo.
Ainda assin é muito mais limpo e seguro que os Joanesburgo e Durbã, sem comparação possível. E por isso a classe média, de todas as raças, se sente a vontade por ali.
………
Há partes do Centrão de Joanesburgo que a situação é desesperadora, no melhor sentido do termo. Por isso o Hotel Carlton (dir.) não aguentou o baque e fechou as portas em 1997.
O mesmo vale pra Durbã. Alguns prédios dessa cidade têm na portaria portas giratórias de metal enormes.
Aquelas que no Brasil só são encontradas nas estações de trem de subúrbios e na portaria das fábricas.
Sabe como é, não? Têm barras de ferro de cima a baixo e só gira num sentido, não há como fazê-la voltar ou ela trava, pra evitar evasões. Então.
Em Durbã, repito, alguns prédios contam com esse equipamento, em pleno Centro, pra impedir a entrada de ladrões e sem-tetos.
Andava eu pelo Centrão dessa cidade. Vocês viram nas imagens da Cracolândia que há nos trilhos. A coisa é horrorosa, o mais forte sobrevive.
E não apenas ali. Nas ruas de uma parte abandonada próxima a estação de trens o mesmo se repete, embora não tão concentrado.
Então, e é aqui que eu entro na história. Sou cascudo em circular e mesmo em fotografar as regiões mais barra-pesadas de várias cidades da América e agora também da África.
Sou sensato e bom observador, sei avaliar o local e momento mais seguros de puxar a máquina discretamente, clicar e rapidamente guardar o equipamento.
Foi assim que já documentei de forma ricamente ilustrada várias favelas, periferias e bocas-do-lixo nesses 2 continentes acima citados. E nunca havia sido abordado agressivamente por ninguém.
Muitas vezes as pessoas perceberam que eu estava fotografando, algumas até falaram comigo, mas nunca ninguém me tirando satisfações – digo, isso me refiro aos moradores.
Com as forças de segurança várias vezes os encontros foram tensos:
Em Buenos Aires a polícia me cercou com 5 agentes (4 homens e 1 mulher), revistaram meu equipamento e apagaram algumas imagens, como já contei antes.
Em Joinville-SC também tive que entregar partes de um filme, nesse caso ainda era analógico. Em Durbã mesmo eu fui pro camburão, como descreverei abaixo.
No México e Paraguai soldados do exército armados com metralhadoras rispidamente me indicaram que eu ‘circulasse‘.
Pois entrara em locais proibidos, de segurança nacional – mas não havia placas indicando, eu não tinha como saber. Enfim, entre outros casos, esses são só alguns exemplos.
Só que sem contar policiais e seguranças, nunca ninguém havia me abordado violentamente. Até esse dia em Durbã.
Eu fotografava a Cracolândia do Centro, e um noiado percebeu. Ele correu até mim e intimou: “Ei, ei, qual é o problema?? Por que você está tirando fotos???”
Felizmente eu sei falar com a malandragem. Moro numa favela de Curitiba, se alguém não sabe. Imediatamente eu tirei uma moeda de 10 Rands do bolso e passei pra ele.
Dá pouco mais de R$ 2, mas pra um viciado e morador de rua qualquer trocado ajuda, não é mesmo?
Aí ele já se acalmou. Eu lhe disse: “não há nenhum problema, não é nada com vocês. Sou um jornalista do Brasil, e só quero mostrar pras pessoas do meu país como é a África.”
“Não é nada com vocês”, repeti. Ele, satisfeito mais com o dinheiro que com a explicação, me liberou.
A África do Sul é uma mistura urbanística entre EUA/Anglosfera x América Latina. Então há guetos centrais, como nos EUA e Europa, e periféricos, como no Brasil e América Latina.
Acima o apuro que passei no gueto central de Durbã. Agora vamos pra periferia da mesma cidade, onde a chapa foi ainda mais quente.
………….
Como eu falei melhor na matéria sobre transportes, todas as grandes cidades da África do Sul têm um sistema de trens de subúrbio.
Operados pela viação férrea estatal ‘Metro-Rail’. Era o antigo ‘trem dos pretos’ na época do ‘apartheid’,
Agora na democracia é ‘trem dos pobres’. Que nos bairros mais degradados são 99,9% negros.
Então pouco mudou, antes a segregação era política e econômica, hoje é só econômica.
O ‘Metro-Rail’ é horroroso. Péssimo, muito ruim mesmo.
Só pega quem não pode mesmo pagar vans (lá chamadas ‘táxis’) ou ônibus, nessa ordem.
Como já expliquei, as vans (quase todas Toyotas e quase todas brancas, embora haja outras marcas e cores) são o principal meio de transporte da África do Sul.
Foi preciso literalmente uma guerra pra que elas pudessem chegar ao Centro e aos bairros dos ricos onde estão os empregos, mas hoje é assim.
Em Joanesburgo e Pretória há o Gautrem, esse sim de qualidade de 1º Mundo, alias Primeiríssimo Mundo.
Acontece que a linha é pequena, e só existe nessas duas cidades. Quem mora perto do pequeno traçado dele o utiliza intensamente.
Mas poucos têm o privilégio. Por isso chamado pelos detratores de ‘trem dos brancos’. Evidente, ficou pronto em 2010, 16 anos depois do fim do ‘apartheid’.
O Grautrem nunca foi segregado por raça, negros o utilizam livremente desde seu primeiro dia de operação.
O que esses críticos querem dizer, e não sem alguma razão, é que o Gautrem é o ‘trem dos ricos’, pois só serve os bairros abastados, onde os brancos são maioria.
Então, repito, o Gautrem é bom. Mais que bom, é ótimo. Mas poucos têm a chance de utilizá-lo todos os dias.
Isso mesmo na metrópole estendida Joanesburgo/Pretória. E ninguém em outras cidades, pois elas não contam com nada parecido.
Então o povão vai de ‘táxi’, por isso querendo dizer de vans, lembre-se. Depois disso os ônibus são a opção mais usada.
Nas poucas linhas já melhor estruturadas, tanto pela burguesia quanto pelo proletariado.
Nos bairros mais afastados, só há linhas de ônibus não-integradas, que por isso são menos utilizadas mas ainda assim têm seu nicho de mercado.
E por último, como última escolha mesmo, vêm os trens de subúrbio da ‘Metro-Rail’.
Esses só pegam mesmo quem não pode pagar qualquer outro meio de deslocamento.
Pra começar a conversa, são extremamente perigosos. Arrastões são rotineiros, muitas vezes com vítimas fatais. Apedrejamentos também são frequentes.
Pois bem. Em Durbã e no Cabo eu andei de trem. Sozinho, só eu e Deus. E nas 3 cidades entrei nas favelas.
Todo mundo dizia “pelo-Amor-de-Deus, não faça isso. É perigoso demais, vão te matar, etc.”
E de fato é perigoso. Mas . . . se não for perigoso não é jornalismo. Se for muito confortável, só editar textos em frente ao computador, não é jornalismo, é relações-públicas.
Porque é perigoso é que eu fui, pra poder lhes contar, pra poder mostrar como são as favelas e trens da África, pra quem não teve a oportunidade de entrar neles.
Disse numa legenda acima que eu entrei no mar em Durbã todos os dias, exceto o que choveu. Mas não foi só por causa do clima que deixei de ir a praia.
Eu já havia reservado esse dia pro trem, fizesse o tempo que fizesse. Assim, saí de casa sob tempestade.
Estiava as vezes, depois voltava a aumentar o toró, mas choveu a manhã inteira (veja as imagens mais pra cima dos pedintes nos sinais com capas).
Peguei o ônibus pro Centro, e dali subi a pé a antiga Rua Berea (atualmente a Rua Rei Dinuzulu, mas todo mundo chama pelo nome antigo, incluso os negros).
Cheguei a ‘Cidade Alta’ (esq.). Depois desci a ladeira pro Centrão. Debaixo de forte temporal. Fiquei ensopado, claro, mas não importo, gosto de chuva.
Me dirigi a Estação Central de Durbã (2 tomadas abaixo). Cara, só eu, tendo essa missão peculiar nesse planeta, pra encarar. O bagulho é louco.
Literalmente, uma “Descida a Escuridão”, como já relatei com detalhes e muito mais fotos nessa mensagem.
As imagens valem por mil palavras. É escuro, é perigoso, os banheiros estavam trancados, então em alguns pontos se sentia cheiro de urina no chão da estação.
E por isso quem pode evita. Eu, não podendo deixar de ser quem sou, fui lá. Pra poder lhes dar esse relato.
Os problemas começaram na hora de comprar o bilhete. Pois você tem que informar o destino já que a tarifa é calculada conforme a distância.
Vi pelo mapa um bairro que queria ir, mas não sabia informar direito ao cobrador.
Meu inglês não é dos melhores, e nem o dele eu acrescentaria.
Puxei o mapa, mostrei a ele, e com ajuda de uma passageira atrás de mim na fila, consegui afinal comprar o tíquete.
Cheguei a plataforma praticamente vazia (esq.), havia um trem parado mas ninguém dentro, e ninguém entrava.
Não seria eu, mais forasteiro impossível, a ser o primeiro.
Esperei quase meia-hora, veio outro trem. Eu e mais umas 4 pessoas entramos. Andou duas estações, recolheu, tivemos que descer.
Espero mais 40 minutos em outra estação também quase deserta, chega outro trem. Esse um pouco mais cheio.
Chego na estação que queria, desço. Mas na África do Sul os trens não trazem no letreiro o nome do destino, mas um número.
Só quem pega sempre sabe o destino de uma composição por esse código.
Com tudo pra atrapalhar e nada pra ajudar, peguei um trem distinto daquele que eu havia pago.
Assim, na hora de sair da estação o fiscal conferiu minha passagem e disse que estava errada.
Era evidente a todos que eu era estrangeiro, era a única pessoa de pele clara de toda estação.
Disse a ele: “eu sou do Brasil, e comprei a passagem incorreta por falha na comunicação, desculpe.”
“Então você tem que comprar o bilhete certo, referente ao trecho que usou”, ele informou.
“Sem problemas, vamos a bilheteria que eu faço isso agora”. Fomos. Nosso diálogo foi em inglês.
Chegando ao balcão, o fiscal e o bilheteiro passaram a conversar entre eles em sua língua africana nativa, eu não entendia uma palavra.
Após alguns minutos de argumentos e contra-argumentos, me falaram que afinal eu não precisava pagar de novo.
Viram que não houve má-fé de minha parte. E como haveria? Até os moradores locais fogem desse trem como o diabo da cruz.
Não seria eu, turista de outro continente, que tentaria lograr a companhia local em alguns centavos. Era óbvio que comprei a passagem errada por engano, e não intencionalmente.
Estávamos no meio de uma das favelas mais complicadas da Grande Durbã, onde se mata gente por qualquer motivo e mesmo sem qualquer motivo.
Eles ficaram de cabelo em pé quando disse que eu era do Brasil, que não conhecia ninguém ali, e iria apenas dar umas voltas no bairro a esmo, tirando fotos.
O bilheteiro abriu a urna que servia de lixo, e revirou papel por papel as passagens já usadas por outros passageiros.
Até que achou uma que coincidia com o trecho que eu usei. Me deu, e disse: “quando você voltar me entregue”.
Insisti novamente em pagar, ele disse que não era preciso, e que tomasse cuidado porque a vizinhança ali não era lugar de brincadeiras.
Klaarwater, eis o nome da vila de onde eu estava, se você quiser conferi no ‘Google Mapas’. É um bairro popular nas encostas do morro, com várias favelas.
Sabe, todo mundo que me via estava apavorado por eu ter ido de trem, e por eu estar ali. Mas eu não sentia medo. Ao contrário, estava tranquilo.
Digo, com tudo mundo o tempo todo te dizendo “é perigoso, é perigoso demais”, você fica meio apreensivo. Mas minha Alma tem muito claro o conceito de Missão de Vida.
Estar ali era estar cumprindo minha Missão, e ter essa certeza fazia com que eu não temesse. Andei pelas ladeiras de Klaarwater, tirando algumas fotos.
Os sul-africanos são muito educados e solícitos, e as crianças que saíam da escola me cumprimentavam:
“Como vai o senhor?” Respondia “vou bem, e você?”. Ou seja: não tive nenhum problema com os moradores do bairro. Os que falaram comigo o fizeram em tom amistoso.
Mesmo sem nunca terem me visto, e, repito, estando óbvio que eu era estrangeiro, que não era morador sequer do país, muito menos do bairro.
Quando eu já me dirigia a estação de trem pra voltar ao Centro de Durbã, uma viatura da polícia encostou.
E me abordou de forma bastante ríspida. Eram um casal de policiais. Foi o homem quem conduziu a conversa: “O que você faz aqui?”
Dei a mesma resposta que ao noiado, que é a mais pura Verdade, portanto nem teria como responder diferente:
“Sou um jornalista do Brasil, e estou fazendo uma matéria sobre a África, pra mostrar como é Durbã as pessoas de meu país”.
“Quem você conhece aqui nesse bairro?”, ele continuava agressivo. Eu, inversamente, permanecia calmo, e respondi naturalmente:
“Não conheço ninguém senhor, eu sou do Brasil e nunca estive aqui antes”. “Como você chegou aqui?”, ele quis saber. “Eu vim pelo trem”.
“Pelo trem???”, ele só não caiu pra trás porque estava sentado. “Você veio de Durbã sozinho pelo trem, e não conhece ninguém aqui?”
Ele precisava confirmar porque lhe parecia inacreditável. Certamente nunca vira nada nem remotamente parecido. “É exatamente isso, senhor”, respondi.
Revistou minha mochila, e ao constatar que não havia nada ilegal, se acalmou. Aí ambos já haviam descido do carro.
A mulher policial falou comigo pela primeira vez. “Você está liberado, pode pegar o trem, se acha que é seguro”.
Disse a ela: “Senhora, sim, eu vim pelo trem, e vou voltar com ele. Não vejo qualquer problema”.
Foi o gatilho que detonou uma reação instintiva. Mais uma vez começou o sermão, que eu já havia ouvido dezenas de vezes na África do Sul, sempre que mencionei a palavra “trem”.
“Não vê problema? Esse trem é perigoso demais. Você não conhece, vão te roubar com certeza, pode ser que te matem. Olhe, você não pode pegar esse trem”.
Ela se contra-disse, pois na frase anterior acabara de dizer que eu era livre pra fazer isso, se assim o quisesse.
Confabulou com o colega dela, e chegaram a uma solução. Aí foi o homem quem disse, abrindo a porta traseira, e me indicando o camburão onde vão os presos:
“Entre aí, que nós vamos te levar a outra parte do bairro, até o ponto de táxis, e de táxi você volta pra Durbã em segurança”.
Perguntei: “você está me prendendo?” Ele respondeu: “não, eu vou te ajudar. Pode entrar tranquilo”.
Ele já havia me dito antes que eu estava liberado, e ali falou de novo.
Achei que ele queria mesmo me dar uma carona, e, bem, o único lugar era na caçapa, no banco da frente só haviam dois lugares, já ocupados.
Por isso, e por não querer entrar em confronto com um policial sul-africano numa das favelas mais perigosas da África do Sul, pedi a Deus Pai que me protegesse.
E entrei no recinto destinado aos detidos. A seguir por fora ele passou a tranca.
Eu não estava preso. Mas que a impressão era essa, isso era mesmo.
Não fui só eu que senti assim. Os ‘manos’ da vila, que observavam a situação, explodiram em gargalhadas.
Não é difícil entender o porque. Eles já viram – e participaram – daquela cena centenas de vezes: a polícia vem na quebrada e leva alguém embora na parte traseira da viatura.
Muitas vezes eram eles mesmos que foram levados ‘pra dar uma volta’, gerando uma estada de muita dor na delegacia, muitas vezes de várias semanas ou meses.
E quando não eram eles mesmos a entrar na gaiola, eram seus vizinhos, parentes e amigos próximos. Ou seja, a mesma dor.
Por isso foi um alívio pra eles verem isso acontecer com alguém de fora.
Que eles não conheciam, e portanto não se importavam. Eu não fora preso, mas que essa era a impressão, certamente era.
Daí natural a reação desses jovens negros africanos, oprimidos por um sistema injusto, descontando toda essa tensão reprimida em risos.
Mas os policiais cumpriram sua palavra. Realmente eles me levaram a um ponto de van, e dali eu embarquei pro Centro.
Valeu pelo ineditismo de entrar num compartimento dos detentos, mas não passou disso, uma experiência curiosa.
Eu compreendo a agressividade inicial da abordagem. Afinal, minha presença ali era absolutamente heterodoxa.
Klaarwater não é turística, digamos assim. Falando mais claramente, é um bairro violentíssimo.
(Nota: Soweto, em Joanesburgo, é turística. Nos tempos do ‘apartheid’ era até proibido estrangeiros e brancos sul-africanos irem ao bairro, e pouca gente tinha interesse.
Mas hoje há interesse, querem ver onde Mandela e outros moraram e lutaram. Assim agências de viagens promovem excursões, que custam bem caro – até por isso dispensamos e fomos de ônibus urbano normal.
Soweto é periferia, é violento, mas é famoso, por isso gente de grana, nacionais e de outros países, vão até lá – num processo similar ao que contece com a Rocinha, na Zona Sul do Rio.
Em Soweto os policiais estão acostumados a ver turistas. Klaarwater não é famosa, não há excursões pra lá.
Se Soweto é a Rocinha, Klaarwater equivale as periferias mais afastadas da Baixada Fluminense, digamos assim.)
Por tudo isso, a princípio, ao ver um estrangeiro de outra raça no bairro, natural que eles suspeitassem de má-intenção.
Verificar o porque de eu estar ali era exatamente o trabalho deles.
Ele me abordou de forma tensa pois a ‘Lei das Ruas’ impõe assim, se ele não usar sua autoridade a perde.
Não estou defendendo nenhuma forma de violência, que fique claro. A polícia existe pra prender (em flagrante ou com mandato), e aí a Justiça assume o caso.
As forças de segurança não devem jamais torturar ou agredir ninguém, mesmo suspeitos de crimes.
Agora, falar um pouco grosso é inevitável, ou a ‘malandragem’ nem permitiria a revista.
Assim foi na África. O policial fez o que ele é pago pra fazer.
Mas ele jamais me agrediu, física e nem mesmo verbalmente. Pediu que eu abrisse minha mochila, o que eu mesmo fiz.
Quando acatei sua ordem, ele nem mesmo me revistou, pra conferir se eu estava armado.
Ao aceitar que a minha versão, apesar de insólita a princípio era a mais pura Verdade, eles passaram a me ajudar.
(E era, aqui está a matéria, escrever sobre a periferia da África era o único motivo pelo qual fui a Klaarwater.)
Nunca na vida deles os policiais haviam visto um turista estrangeiro naquelas bandas, muito menos que tenha ido sozinho.
De trem, sem um contato no local, e – espanto dos espantos – eu não tenho celular! Logo não poderia pedir socorro se algo desse errado.
Era eu e Deus, mesmo!!! Fé Total na Proteção Divina, em que aquilo era minha Missão, logo Deus Pai iria me proteger.
E a proteção veio, mesmo de forma insólita, mesmo das pessoas que a princípio me viram com desconfiança.
………
Os sul-africanos são extremamente educados e solícitos. Ao perceberem que alguém precisa de ajuda eles voluntariamente abordam a pessoa e se oferecem pra auxiliar.
Aconteceu muitas e muitas vezes conosco, quando nos viam nos bairros mais perigosos, os moradores locais vinham e nos orientavam como sair dali.
Em Joanesburgo foi o mesmo. Estávamos no terminal de ônibus de Soweto, um rapaz veio e nos orientou: “Pra onde vocês querem ir?”. Ao informarmos que era de volta pro Centro, ele indicou a plataforma.
O ônibus chegou ao ponto final num bairro da Zona Central mas já além do Centrão, entretanto nós não descemos.
Não conhecíamos a cidade, e conversávamos com o mapa na mão, falando em português obviamente.
Analisávamos onde seria o melhor lugar pra voltarmos ao bairro de Killarney, no começo da Zona Norte, onde estávamos hospedados.
O motorista do ônibus saiu de seu posto e veio falar conosco, pra ajudar. Dissemos que desceríamos em determinado ponto do Centro. Ao chegar ali, mais uma vez ele encostou o veículo e veio até o fundo do mesmo, gentilmente nos lembrar que era ali era o destino pretendido.
Na Cidade do Cabo aconteceu mais uma vez. Alias, na África do Sul pela primeira vez andei em vários modais:
Num camburão, no Uber (que eu nunca havia utilizado no Brasil), em táxi clandestino e em carros das marcas Mercedes e BMW. Esses 3 últimos conto em outra postagem, que o texto já está longo demais.
Por isso, pra caminhar pro fechamento, um dia na Cidade do Cabo pegamos o Uber pra ir a praia.
Uma praia num bairro de gente muito rica, num subúrbio a moda ianque na Zona Norte da cidade.
Também descrevo melhor o bairro e minha curtíssima entrada no mar absolutamente gelado noutra mensagem. Aqui basta dizer que cada sobrado é cotado na casa dos milhões de reais.
Mas eu conversando com o motorista do Uber (que lá os negros chamam de ‘Uba’, também me estenderei posteriormente sobre a linguagem, veem que a série ainda vai longe) disse que a tarde eu iria no bairro de Khayelitsha, na periferia, pra contrastar, pra conhecer os dois lados.
Pronuncia-se ‘Calítcha’ ou ‘Calítia’. É um dos bairros mais perigosos da Cidade do Cabo e de todo planeta.
Leva mais de uma hora pra chegar de ônibus, e isso que a maior parte do trajeto é pela auto-estrada, ou seja, diretão, o latão vai sem paradas seja em pontos ou sinais.
Só começa o pinga-pinga quando ele sai da rodovia e entra no bairro. Já conto essa parte.
Antes, recordando, ainda pela manhã eu contei ao motorista (negro) que iria a Khayelitsha, e que em Durbã já havia visitado bairros parecidos, um deles o Klaarwater onde andei na viatura.
O rapaz se entusiasmou: “Ah, pelo menos você vai conhecer a África de Verdade!!!”
“Porque 99% dos turistas vem ao Cabo, e só conhecem o aeroporto, os ‘shoppings’, a Mesa-Montanha e os bairros dos ricos – isso não é de fato vir a África”.
Realmente. A Cidade do Cabo, em sua Zona Central, conta com enorme presença de brancos. É a mais pura verdade. você não se sente plenamente na África.
E sim na Europa (todas as metrópoles oeste-europeias hoje têm grande leva de imigrantes africanos, o sabem) ou em partes da América (Colômbia, Equador, Brasil ou EUA, entre outros) em que há consolidada a mistura entre negros e brancos.
Eles dizem isso lá. Presenciei quando, aos pés da Mesa-Montanha, um morador local, mulato, puxou conversa com duas meninas alemãs.
Elas conheciam a África sozinhas, como mochileiras. Ele falou textualmente a elas: “Vocês vão gostar da Cid. do Cabo. É África, mas não parece”.
Pois bem. Khaeylitsha É África. 100% África, e parece África e somente África. Um bairro enorme e miserável.
Distante, tudo é precário, violência urbana na estratosfera, fizeram várias cohabs pra urbanizar as favelas, mas novas invasões surgem o tempo todo, tornando o trabalho hercúleo e permanente.
Sabe a missão de Sísifo de empurrar eternamente uma grande pedra morro acima, e assim que ele conclui ela roda ladeira abaixo, obrigando ao eterno recomeço?
Então, urbanizar as favelas da África é o mesmo. Até aqui o que descrevi de Khayelitsha é exatamente igual a América Latina.
De São Paulo a Argentina a BH a Belém a Curitiba ao Chile ao México e a Colômbia, República Dominicana, Paraguai e toda parte, essa é nossa realidade.
A diferença é que na América Latina as periferias têm muitas raças misturadas. Sempre há brancos, negros e índios, e proporções variadas conforme o país e mesmo a parte do país.
Em Khayelitsha só moram negros. Khayelitsha É África, de Corpo e Alma. Além de tudo que descrevi acima, é um bairro extremamente denso.
Puxadinhos nas cohabs, que são universais, tornam praticamente impossível distinguir onde já foi urbanizado de onde nunca foi, fica tudo com cara de favela.
Não tenho nada contra as favelas, eu moro numa delas, e moro porque quis morar (era assim quando fiz o texto, em 2017; nesse mesmo ano eu me mudei do Boqueirão, e desde então vivo na periferia mas não na favela).
Da mesma forma, eu fui a Klaarwater, Soweto, Khayelitsha, e muitas outras quebradas desse país sabendo o que ia encontrar, e fui exatamente por isso. A favela não me assusta.
Ainda assim, em Khayelitsha a coisa é muito densa, são centenas de milhares de pessoas se espremendo sem quase nenhuma infra-estrutura.
As casas chegam quase na via pública, as ruas ficam cheias de gente, o tempo todo. E eu era o único que não era negro. Eu não me defino como ‘branco’ pois isso significa ‘europeu’, e eu não sou europeu, sou Americano.
A raça pra mim é algo tão físico como cultural. Assim, eu não sou ‘branco’, Sou Americano.
De qualquer forma minha pele é clara. Aí, em Khayelitsha ficava evidente não apenas que eu não era do bairro, como também que eu não era do país.
Já visitei favelas horrorosas na América, tanto no Brasil como em vários países. Mas aqui, pela mistura de raças, eu posso andar incógnito. Me embrenho entre os becos e vielas, pois olhando pra mim as pessoas não percebem que sou de fora.
Ao menos enquanto não há diálogo. Resultando que se eu não falar com ninguém na rua, e na maioria das vezes eu não falo, ninguém descobre minha ‘identidade secreta’. Em Khayelitsha eu não tinha essa proteção.
Todos viam imediatamente que eu era um turista estrangeiro andando sozinho.
Sendo assim um alvo fácil pra ladrões. Não é uma questão do bairro ser pobre o não, e sim de ter muvuca nas ruas.
Klaarwater em Durbã, Soweto em Joanesburgo, e Atlântida na própria região metropolitana da Cidade do Cabo, são tão pobres quanto. Mas são menos densos.
Nesses outros, eu andava nas ruas ou nos ônibus, e viam que eu não era dali, mas não haviam grupos numerosos de pessoas aglomeradas.
Então eu senti confiança pra circular livremente em qualquer parte e até pra fotografar extensamente.
Digo, em Soweto não saí do ônibus, mas dentro dele fotografei a vontade.
E mesmo conversamos com alguns moradores do local que tinham curiosidade em saber como é o Brasil.
A interação foi amistosa e tranquila. Em Khayelitsha preferi não fotografar mesmo no ônibus, e muito menos na via pública.
Tudo se somou, um lugar muito pobre, a raça diferente, e muita galera nas esquinas.
99% dos moradores de Khayelitsha são honestos e trabalhadores.
Ganham duramente seu pão com o suor de seus rostos, não tenho qualquer dúvida disso. E por isso fui ver onde eles moram.
Quase todos vocês que leem esse relato nunca tinham ouvido falar desse bairro, tenho certeza.
Então, inaugurar o nome ‘Khayelitsha’ na mente dos leitores é minha homenagem aos Filhos da Mãe-África, que tanto lutam e sofrem.
Eu Amo a Favela, mais que isso, Eu Sou a Favela. E por isso não temi ir Khayelistha, nome que causa arrepios a burguesia do Cabo, mesmo aos burgueses negros. Mas a mim não, por isso fui.
Ainda assim, mesmo com 99% de seus moradores honestos, não vamos negar que Khayelitsha e todas as outras quebradas da África do Sul têm suas gangues, e gangues muito violentas.
O número de assassinatos diários nessa nação não deixa dúvidas desse triste fato.
Também não tapemos o sol com a peneira, porque o amor não pode cegar.
Tanto é assim que na auto-estrada que cruza o litoral austral da África do Sul (o trecho urbano dela é a via de acesso aos subúrbios a leste do Cabo) os avisos eletrônicos dizem textualmente:
“Zona de Perigo. Não pare na rodovia. Se precisar de ajuda ligue pra tal número”.
Que aí o pedágio manda uma escolta armada, pra você poder consertar seu carro em segurança.
Assim, explicitamente, com todas as letras: “Zona de Perigo” (‘Danger Zone’ no original). E não sem motivo.
As margens da pista estão inúmeras favelas, além de algumas cohabs já urbanizadas, mas também violentas (a esquerda acima).
Se um carro de alto padrão encostar ali, as chances são grandes que surja uma galera pra depenar o motorista e sua família, afinal os ladrões estão ‘em casa’.
Após cometido o roubo (e quem sabe algo pior) basta se embrenhar de novo nos becos da favela que está a alguns metros.
E será difícil pra polícia achá-los, terá que ser feita grande operação, com vítimas, que vai aumentar ainda mais a tensão.
O melhor mesmo é evitar e não parar sozinho no acostamento, sob hipótese nenhuma. Teu carro quebrou? Se possível siga até um posto de gasolina ou praça do pedágio.
Na pior das hipóteses, ligue imediatamente pedindo ajuda, em poucos minutos a polícia virá protegê-lo. E isso vale pra brancos e negros. Os ladrões não são racistas, se quiser ver assim.
Se um burguês negro parar ali com um carro ou caminhonete na marca dos centenas de milhares de Rands (dezenas de milhares de reais), será roubado da mesma forma.
Sem piedade ou ‘camaradagem de raça’. Bem, vimos nas fotos que negros matam negros com fogo, paus e pedras sem qualquer compaixão.
Mesmo se abstendo de motivos políticos, as taxas de homicídios sul-africanas são altíssimas, e em 95% dos casos o assassino é negro e a vítima também.
Khayelitsha e auto-estrada que dá acesso a ela é ‘Zona de Perigo’ mesmo, não é modo de falar.
Portanto o aviso luminoso me chamou a atenção por ser tão explícito, mas não há como retificá-lo, de forma alguma.
Ainda assim, em Khaeylitsha, eu não senti medo de estar ali.
Só que eu achei melhor não fotografar, pra não chamar ainda mais atenção. E também preferi não circular muito.
Muitos dos negros das favelas da África do Sul muitos nem são fluentes em inglês, arranham algumas palavras somente nessa língua.
Pois se comunicam basicamente em seus idiomas nativos.
Seus empregos são braçais, com pouca ou nenhuma interação com o público, assim isso lhes basta.
Então até pra pedir uma orientação seria complicado.
Tudo somado, eu fui observando essa realidade de dentro do ônibus.
Quando cheguei ao ponto final e desci, achei que era suficiente, que eu já havia ido onde quase nenhum estrangeiro turista ousara pisar até então.
Assim eu poderia retornar imediatamente, sem andar a pé pelo bairro. Busquei então a estação de trens.
Sim, esses trens são perigosíssimos. Mas é como estar entre entre a fogueira e o caldeirão.
Pelo menos no trem eu não precisaria pedir informações, mas pra pegar van ou ônibus sim.
E pra pedir informações iriam me perguntar porque eu estava ali.
Afinal nunca nenhum deles imaginaria que um turista de outro continente iria de ônibus urbano a Khayelitsha.
Sozinho, sem conhecer ninguém, e sem celular. Esse diálogo, que seria extenso, poderia gerar uma aglomeração perigosa.
Eu estava no coração da ‘Zona de Perigo’, só eu e Deus.
Então preferi optar pelo que julguei ser menos perigoso, e me dirigia a bilheteria da estação do ‘Metro-Rail’.
Deus Pai mais uma vez não me abandonou, e mandou um anjo me proteger.
Esse Espírito Guardião se materializou na forma de uma linda moça negra sul-africana, chamada Mona Lisa.
Ela percebeu que eu era um ‘peixe fora d’água’ no meio da quebrada, e quando me viu indo pegar o trem, interveio.
“Ei moço, não pegue esse trem. É muito perigoso”, ela repetiu o que todos dizem na África.
Aí expliquei a situação, disse que eu era do Brasil e estava lá fazendo uma matéria sobre as periferias da África do Sul.
E que queria voltar pro Centro, mas como não conhecia outro meio, o trem me parecia a melhor – ou no mínimo a menos pior – de minhas opções.
Ela então falou: “Vamos fazer o seguinte. Eu te levo até a estação de táxis”. Por isso ela quer dizer as vans, você sabe. A questão é que Khayelitsha é tão distante do Centro que não tem linha de van direta até ele.
É preciso pegar uma van ‘alimentadora’, que só fica dentro da vila.Ela vai até o terminal central de Khayelitscha, e dali eu precisaria trocar – pagando novamente – pra outra van, que me levaria até o Centro.
Mona Lisa me explicava isso, que eu precisaria baldear no terminal. E disse: “eu falo com o motorista. Explico a situação, que você é estrangeiro.”
“E que precisa chegar ao Centro em segurança. Aí lá no terminal ele vai te mostrar qual a outra van você pega”.
Assim foi feito, ela falou com o condutor num idioma negro nativo.
Antes disso, enquanto cruzamos a passarela que separava a estação de trens da estação de vans, contei minha missão.
Relatei que já havia ido a muitos bairros parecidos aqui na América, em meu próprio país e vários outros.
Disse que pra mim era uma grande honra estar ali, no bairro dela.
Mona Lisa até se ofereceu pra então darmos uma volta maior pela redondeza, ela me acompanharia e com seu salvo-conduto não haveria o que temer.
Eu senti sinceridade nela, que queria mesmo me ajudar, e jamais me pôr numa armadilha. Mas pra não abusar da boa vontade da moça eu atalhei:
“O que eu já vi já foi suficiente. Já visitei Khayelitsha (o que quase nenhum morador do Cabo tem a coragem de fazer, muito menos os turistas), está bom.”
“Me leve até o ponto do táxi, fale com o motorista pra ele me indicar a outra van, é melhor eu voltar pro Centro.
Querida, muito obrigado por tudo que você está fazendo por mim, que Deus lhe pague.”
Assim foi. Entrei na primeira van, que serpenteou nas estreitas ruas de Khayelitsha.
Pra compor o cenário, o motorista ouvia música africana de raiz, no idio ma local. Não os enlatados dos EUA/Europa em inglês, mas a cultura deles.
Me senti num filme, sabe? Aquilo me emocionava, os pêlos do corpo se arrepiavam todos.
Sim, em plena ‘Zona de Perigo’, pra alguns. Mas pra mim não houve qualquer ameaça.
Mesmo nas partes mais perigosas da África, fui bem acolhido, sempre.
Quem me abordou foi sempre pra me ajudar, e isso valeu até pra polícia.
Cheguei a estação. O motorista cumpriu o pedido da querida menina Mona Lisa, e me falou “você pega o táxi nº 5 pra Cidade do Cabo”.
Agradeci. Nem era preciso esse cuidado, essa estação era sinalizada, ao contrário da primeira em que não havia qualquer indicação de destino.
Só pra garantir perguntei em inglês ao motorista da nova van se o destino era Cidade do Cabo, por isso querendo dizer o Centro da cidade.
“Cape Town, man!! That’s right”, ele respondeu bem alto, entusiasmado.
Sentei no banco da frente, a seu lado. Eles sempre ouvem música, mas esse preferiu os enlatados euro-ianques.
Estava bom pra mim, tudo estava bom, tudo tinha dado certo. Pegamos a rodovia, os mesmos avisos “não pare, zona de perigo”. Um monte de favelas a minha volta. Quase atropelamos uns meninos que invadiram a pista atrás de uma bola, coisa de criança sem noção das leis da física.
Era meu último dia na Cidade do Cabo. Vendo tudo aquilo, a luta multi-milenar daquele povo, a Saga da Raça Guerreira Negra Original, eu chorava de emoção. Eu era também parte dessa Vibração, uma gota no Oceano que seja.
Fiz parte da África, e a África fez parte de mim. E assim será pela Eternidade, estaremos Unidos, Sempre e pra Todo Sempre. Mais que Amar a África, Eu Sou a África.
E por isso a Grande Vida (Deus Pai) permitiu que eu fizesse 40 anos no Solo Sagrado Africano, que eu me ajoelhei e beijei como Prova de Amor.
Eu nunca fui a Europa, e nessa encarnação não irei. Eu não sou europeu, digo de novo. Sou Americano de Corpo e Alma, e em meu Coração Sou Africano também. Sou parte da África, ela é parte de mim.
Eis o turbilhão de sentimentos que jorravam pela minha Mente e Coração, sentado ali no banco dianteiro da van. Vendo a Cidade do Cabo passar a meu lado, como numa produção cinematográfica.
Uma história de amor. Amo a África. E, pela forma gentil que fui tratado, mesmo em seus bairros mais perigosos (outros não tiveram a mesma sorte, e as fotos e a estatística falam por si mesmas), me Senti amado de volta.
Lágrimas me corriam dos olhos, como já havia acontecido quando eu deixava a cidade de Medelím pra ir embora da Colômbia.
Chegando ao bairro de ‘Woodstock’, onde fiquei hospedado já na Zona Central, desci. Terminava ali minha estada física nessa Cidade do Cabo que tanto Amei e Amarei pra sempre.
Jantei, no dia seguinte cedo rumei ao Aeroporto, passando pela mesma rodovia que corta a ‘Zona de Perigo’.
……….
Minha Saga nas periferias sul-africanas ainda não havia terminado.
Minha última cena na África do Sul foi mesmo uma operação de guerra em Joanesburgo.
Fui visitar a favela de Alexandra (pronuncia Alec-zandra), na Zona Norte, a parte rica da cidade mas que tem essa ‘boca quente’.
E isso desde sempre, desde o ‘apartheid’ rolam conflitos violentos por lá, muitas vezes de negros contra negros.
Então mano, cheguei lá, caramba cara, a praça antes da favela tava ocupada por umas 40 viaturas da polícia, sem exagero.
E as entradas da favela todas elas trancadas com barricadas formadas pelos veículos policiais.
Embaixo do rodado de uma viatura tinha um corpo coberto, com jornais ou um lençol.
Pensei que havia ocorrido um assassinato entre gangues da favela. Ou então que tivessem matado um trabalhador num assalto, mas não sabia que a polícia estava envolvida.
Por isso não entendi porque um aparato de segurança tão grande, afinal Joanesburgo tem 1,3 mil homicídios/ano.
Se eles fossem isolar cada cena de crime com um efetivo desse tamanho, teriam que importar policiais da África inteira pra ajudar.
Depois fui ler no jornal, não foi assassinato, e a polícia estava envolvida.
Uma viatura atropelou e matou uma menina adolescente que voltava da escola.
Por isso o corpo estava sob o eixo, e por isso uma operação de guerra:
Em 2015, num caso similar a polícia atropelou e matou 2 homens.
A população fez justiça com as próprias mãos e queimou os 2 policiais vivos.
Por isso cercaram a praça e trancaram a favela com um contingente, digo de novo e não é exagero, digno de uma ocupação militar. Era uma ocupação militar.
……….
Aquele foi no fim-de-tarde de meu último dia em Joanesburgo, que foi também meu último dia na África.
Sintetizou bem o país, suas tensões, suas lutas. A luta contra o cruel ‘aparheid’ foi vencida, a democracia veio.
Falta agora vencer a tentação de usar a violência pra tentar resolver os problemas. A violência não resolve nada, apenas agrava todas as dificuldades.
Essa luta apenas inicia. Por hora, a situação é essa aí: mais de 2 mil assassinatos por ano no Cabo somente.
E mais de mil e tantos em Durbã e em Joanesburgo, muitos milhares mais por todo país. Em 95% dos casos, um negro mata outro.
Ruas tingidas de vermelho, cenas de guerra.
Bang! Bang!
África do Sul, p*rra!!!
Só eu e Deus na ‘Zona de Perigo’,
Eu Sou o Mensageiro.
E Deus Pai proverá.