Por Maurílio Mendes, O Mensageiro
Publicado em 18 de março de 2018
Ao fim da matéria explico porque fiz essa relação com a música “O Número da Besta”, do ‘Iron Maiden’.
Nossa série sobre a Argentina chega a capital.
Vamos falar um pouco do que observei na cidade.
Com isso recapitulando algumas coisas já ditas em outras mensagens da série.
Adicionando muitas informações novas, é claro.
As fotos são na maior parte inéditas, quase todas de minha autoria.
As que forem baixada da internet eu identifico com um ‘(r)’, de ‘rede’.
…..
Como a legenda informou, hoje, 18 de março de 2018, faz exatamente um ano que eu fiz esse desenho a esq. :
Um casal dançando tango (em comemoração ao aniversário que subo essa matéria).
O título, “Perfume de Mulher”, é uma referência óbvia a famoso filme.
E fiz lá, direto do Centro de Buenos Aires, ou melhor, do ‘Micro-Centro’.
Estava vendo o Obelisco de minha janela enquanto traçava as linhas desse casal em preto-&-branco.
Esse mesmo Obelisco que é o cartão-postal-mor, a imagem-arquétipo de Buenos Aires.
Todos conhecem essa imagem, mesmo quem nunca pisou na Argentina.
O que eu não conhecia antes de ir pessoalmente é essa escultura feita com vegetação.
Que na frente dele forma em letras gigantes as iniciais da cidade, B.A. .
E mais a bandeira da ‘Cidade Autônoma de Buenos Aires’. Esse é o novo nome oficial.
Antigamente a ‘Capital Federal’, o povo ainda diz assim. E por que ‘autônoma’?
Porque não pertence a nenhum estado (lá os estados se chamam ‘províncias’, o sabes).
Nomenclatura a parte, o Obelisco, a frente dele, é obviamente o ponto mais procurado do país pros turistas.
Que tiram fotos com ele como cenário. Quando eu passei lá ocorria exatamente isso:
O rapaz posa sob a bandeira enquanto o grupo que o acompanha faz o registro, como deixa claro a primeira imagem da matéria.
No entanto veja o outro lado – literalmente. No calçadão sem-tetos dormem em pleno dia.
A Argentina atravessa severa crise social, política, econômica, todas as dimensões. E essa imagem sintetiza isso.
Agora, justiça seja feita, nesse ponto (pessoas morando nas ruas) o Brasil está pior.
Muito pior, sem comparação possível.
Na Argentina existem sem-tetos mas numa proporção ‘normal‘.
Digamos assim né, se é que isso pode ser consideradonormal.
A título de comparação, existem mendigos também no Chile, os vi e fotografei.
Mas muito poucos, pelo menos na capital é bem raro.
Na África do Sul existem mais moradores de rua (incluso vários brancos, ainda que a maioria negros) que na Argentina, mas bem menos que no Brasil.
Não sei se há algum país que esteja pior que o nosso nesse quesito, infelizmente.
Aqui a situação está catastrófica, parece que passamos por uma hecatombe nuclear.
Em Curitiba o problema está alarmante, em todos os bairros agora há aglomerações de pessoas que vivem nas ruas.
E no Centro então a coisa está tenebrosa, mesmo de dia e a noite é melhor não comentar.
Agora, fui a São Paulo no fim de janeiro de 18, e me assustei. Realmente eu me assustei com o que vi:
A Zona Central de Sampa está…me faltam palavras pra definir. Está macabra.
Confira matéria completa com muitas fotos. Hoje nosso tema é a Argentina.
Só falei pra podermos comparar:
A crise no vizinho país está brava, muitas coisas estão até mais complicadas que no Brasil.
Mas no ponto dos sem-tetos aqui é infinitamente pior.
Isso exposto, bora de volta pra lá. Claro que gente na Argentina há morando nas ruas. Fotografei alguns atrás do Obelisco.
E na mesma região, do outro lado da 9 de Julho (onde ficamos hospedados) havia uma família inteira.
Eles improvisaram uma ‘casa’ de papelão em plena calçada, tinha espaço até pros cachorros – e isso no Micro-Centro!
Outro dia andava eu tirando fotos entre o Retiro e a Recoleta.
O Retiro é bem o Centrão da cidade mesmo, onde estão os terminais de transporte, de todos os modais.
Mas a Recoleta é um bairro de elite, colado ao Centro, coisa que no Brasil não existe mais há décadas.
Na Recoleta estão alguns dos prédios mais caros da Argentina.
(Ao lado de Porto Madeiro e Palermo, que são vizinhos a ela, então é tudo a mesma região.)
Mas embaixo do viaduto havia um cidadão argentino que não era tão afortunado, pra dizer o mínimo.
Esse não tinha um apê de ‘um por andar’ que vale alguns milhões de pesos. Longe disso.
Se abrigava sob as alças de um viaduto (fotografei sua ‘casa’, busque pela legenda).
Ele também tinha cachorro, esse bicho é mesmo o ‘melhor amigo do homem’, nunca abandonam seus donos não importam em que condições.
Me pediu dinheiro, dei-lhe 2 pesos, equivalente a somente R$ 0,30, e disse “só tenho isso, irmão”.
Ele exultou de felicidade, respondeu “pelo menos já posso comprar um cigarro“.
Pra que não tem nada o pouco é muito. Dureza, né?
São os Lados ‘A’ e ‘B’ da Argentina literalmente lado-a-lado..
…………
Buenos Aires não tem Zona Leste, porque essa é o mar.
Ou melhor dizendo, o Delta do Rio da Prata, que é tão largo que parece mar.
Os ricos e a alta burguesia habitam majoritariamente as Zonas Central e Norte da capital e sua região metropolitana.
Enquanto as favelas e demais ‘partes quentes da cidade’, se é que me entendes, se concentram nas Zonas Sul e Oeste.
‘CABA’ X ‘AMBA’, AS DUAS FACES DA MESMA METRÓPOLE:
UMA É A ‘EUROPA NA AMÉRICA’, E DEPOIS DO VIADUTO/PONTE ‘AMÉRICA DE CORPO & ALMA’.
A maioria das pessoas no Brasil não conhece as siglas ‘Caba’ e ‘Amba’. Começamos pela primeira.
‘CABA’, A “EUROPA NA AMÉRICA”: NA “CAPITAL FEDERAL” COM CERTEZA –
Buenos Aires tem a fama de ser uma cidade europeizada, como todos sabem.
É verdade, o mito corresponde ao fato? Sim e não.
Depende do que alguém entende como “Buenos Aires”.
Politicamente, a Região Central da metrópole é a Capital Federal.
A ‘Cidade Autônoma de Buenos Aires’ no termo mais moderno (cujas iniciais formam a sigla ‘CABA’).
Ali, fato. Sim, Buenos Aires é europeia. Totalmente.
Muito mais que Curitiba, que é a capital mais branca do Brasil.
Muito mais. A classe média-alta curitibana é formada majoritariamente por pessoas que aqui no Brasil consideramos ‘brancos’, verdade.
Todavia nunca te esqueças que os ‘brancos’ brasileiros, em sua maioria, não seriam considerados brancos na Europa e EUA.
Mesmo os de melhor padrão social, porque entre os ‘brancos’ brasileiros boa parte tem mistura de raças.
Mesmo com pele mais clara, a imensa maioria tem um pouco de sangue das raças escuras.
No Hemisfério Norte, pra pessoa ser ‘branca’ não pode ter mistura de raças não-europeias.
No Brasil não somos tão rigorosos. Pelo exemplo é mais fácil entender.
Busque na internet a imagem do general e ex-secretário de estado ianque Colin Powell.
Nos EUA, Powell é negro, ele mesmo se define assim.
No Brasil, caso ele fosse da burguesia ou elite (como é), nós o chamaríamos de branco.
Se você entende isso, a classe média-alta curitibana é formada por pessoas que na sua imensa maioria tem a cutis clara.
Já os olhos e cabelos variam amplamente, por todo espectro, mas boa parte deles são mestiços, ‘brancos’ no Brasil, nos EUA e Europa não.
Então. A burguesia de Buenos Aires, é de imensa maioria de brancos.
Falo aqui somente da Capital Federal – sem incluir a região metropolitana portanto.
Nesse critério seus habitantes são brancos mesmo.
Seus cabelos são loiros ou ruivos, e os olhos também são claros.
Eu estava num restaurante do Centro de Buenos Aires.
Na mesa ao lado havia um grupo grande, de perto de 10 pessoas.
Quase todos eram brancos, mas brancos pelo padrão europeu.
A pele deles parecia um leite de tão despigmentada. Olhos e cabelos igualmente claros, ou ruivos.
Aqui em Curitiba não é assim, repito.
Na África do Sul ocorre o mesmo que na Argentina, até mais intenso:
Os brancos sul-africanos são claríssimos, parecem fantasmas de tão alvos que são.
Na África do Sul a miscigenação é próxima de zero.
até porque até uma geração atrás era proibido relações sexuais entre raças diferentes.
Agora é permitido, vimos (e fotografei) vários casais inter-raciais nas orlas de Durbã e Cidade do Cabo.
Acontece, amigos, que as coisas mudam devagar, óbvio.
Eles são ‘vários’ se você considerar que até a geração dos pais desses jovens não havia nenhum.
Entretanto 99% dos casais sul-africanos ainda são intra-raciais, ou seja, de pessoas de mesma raça.
Portanto os brancos da África do Sul são iguais aos brancos da Holanda, Inglaterra, Alemanha e França, de onde eles vieram.
Principalmente os dois primeiros, mas as duas últimas nações também contribuíram.
Na Argentina nunca houve ‘apartheid’, então a miscigenação é maior que na África do Sul. Bem maior.
Porém muito menor que no Brasil – entre a burguesia, na periferia é outra história, já chego lá.
Agora, na burguesia é assim.
Entre os habitantes endinheirados da Capital Federal argentina, imensa maioria de brancos.
E, repetindo, brancos caucasianos mesmo, pessoas normandas.
São alvos iguais aos europeus e diferentes de nós brasileiros, enfatizo mas uma vez porque em nosso país o conceito é mais ‘flexível’.
Mas cruze o Riachuelo ou a Auto-Pista General Paz e verá como a coisa muda.
JÁ A AMBA É A ‘AMÉRICA NA EUROPA SUL-AMERICANA’: NO SUBÚRBIO O POVÃO É MESTIÇO –
A burguesia argentina é majoritariamente euro-descendente.
E sem mistura de sangue, uma verdadeira ‘Europa na América’.
Acontece que a periferia é completamente diferente.
Entre o povão é onde a Argentina se reconcilia com a América.
Onde a Argentina é América de Corpo-&-Alma.
O que quis dizer por ‘cruze o Riachuelo ou a Auto-Pista’ é “vá pra região metropolitana”.
Se ‘Caba’ é a Capital Federal, ‘Amba’ é a sigla de ‘Área Metropolitana de Buenos Aires.
Mas nem é preciso ir pra outro município (e estado da federação).
Se você for ao bairros proletários mais afastados, mais ainda dentro da Capital Federal (ou nas favelas, mesmo no Centro), aí os brancos puros já são ínfima minoria.
A mestiçagem agora impera. Isso já na periferia de Buenos Aires. Fiz um desenho que resume a questão:
Retratei duas amigas argentinas, uma loira e uma índia, se uma imagem vale por mil palavras.
E se pegar estrada mais ainda. O interior é bem mais escuro que a capital.
Muito mais, sem comparação possível.
Já está no ar a matéria sobre Córdoba, aí os que ainda não tiveram a chance de ir até lá vão comprovar.
No interior a Argentina é como todo o resto da América Latina (Brasil, Colômbia, Paraguai, Chile, México, Bolívia, etc): com mestiçagem mesmo na classe média.
Agora, na capital é como falei, muito parecido com Europa/EUA, a raça caucasiana (sem mistura) é amplamente majoritária entre a classe dirigente. Isso já disse.
Porém a periferia de Buenos Aires é miscigenada. Totalmente.
Nos subúrbios da metrópole, nas favelas tanto mais centrais quanto afastadas, aí é tudo ‘junto e misturado’.
No dia que cheguei, fui a um jogo de futebol, São Lourenço x Atlético-PR.
(Nota: eu sou de Curitiba ainda assim não sou atleticano.
Fui nessa partida porque foi a que foi possível, a que ocorreu quando estava lá.
Minha primeira ideia era assistir uma peleja local do campeonato argentino, mas não deu certo.
Então fui ver o CAP, mas sem ser torcedor dessa agremiação.
Portanto não inicie aqui uma discussão clubística porque não é o espaço pra isso.
Também já assisti um jogo do Coxa longe de Curitiba.
Lá em Belo Horizonte-MG no caso, então estou 1×1, neutro na disputa dos rivais da capital).
Já volto ao tema da composição racial, entenderão onde quero chegar.
Mais um pequeno adendo, já que falamos do esporte mais popular do planeta:
Buenos Aires é futebol. São nada menos que 24 Libertadores concentrada numa única cidade.
(Nessa conta incluindo região metropolitana e ‘La Plata’, que é fora da Grande Buenos Aires.
Ainda assim um subúrbio próximo, como São Paulo e Jundiaí.)
Então ir a Buenos Aires e não ir ao estádio é como ir a Roma-Itália e não ver o papa.
Alias o atual papa que é argentino como sabem é torcedor declarado desse São Lourenço que vi ‘in’ loco’.
Ainda não fui a Roma, não fui a Europa nessa encarnação. Mas fui a Buenos Aires, e fui ao estádio.
Enfim, já fiz matéria completa sobre o futebol argentino, onde conto com detalhes incluso com muitas fotos.
Aqui nosso tema é a composição racial da periferia de Buenos Aires.
Então eu estava no lugar certo pra analisar isso, o São Lourenço é um time suburbano, popular.
O time da burguesia é o River Plate, o Boca o do povão. Claro que é uma generalização, e toda generalização é imprecisa.
Evidente que há muitos burgueses que torcem pro Boca, e o River tem muitos fãs na periferia. Evidente que sim.
Anda assim, nas favelas e loteamentos de quebrada no subúrbio o Boca tem 2/3 da torcida ou mais, e na burguesia é o River quem domina inconteste.
São esses dois quem tem torcida gigante a nível nacional. Os demais são muito fortes no entorno de seus estádios.
Mas conforme vai se afastando vai se diluindo.
O São Lourenço é um desses casos, típico time suburbano. Um dos grandes do país? Sim. Mas ainda suburbano.
Muito forte ali na divisa da Zona Oeste com a Sul onde está sediado, e bem menos em outras partes da cidade.
E bota ‘subúrbio’ nisso. Bem em frente ao estádio há uma favela bem chamativa.
Uma das maiores e mais perigosas de Buenos Aires (veja as fotos, busque pela legenda).
Todos me alertaram que o local é violento, do taxista ao rapaz da vendinha que fui tentar carregar o cartão do ônibus, aos outros torcedores a quem pedi informação:
“Não ande pelas ruas. Não ande. O bairro aqui é sinistro, vão te roubar com certeza.”
Não consegui mesmo recarregar o cartão, tratei de entrar logo no estádio, aceitei o conselho, fiquei bem quietinho lá dentro, em segurança.
Enfim, falei tudo isso pra chegar aqui: fiquei acompanhando o “aquecimento” da banda da torcida organizada (‘barra-brava’) do S.L..
Foi regado a muito churrasco popular (um pão com bife extremamente gorduroso) e maconha.
É um time do povo, a maioria dos torcedores é do bairro e bairros vizinhos. Uma região pobre, esquecida e perigosa da cidade, como já dito.
Portanto eu estava no ponto ideal pra traçar um raio-x do povão, da classe operária, da periferia da urbe.
E o que eu via me dava a impressão que estava na divisa da Europa com Ásia:
Turquia, Geórgia, Romênia, Bulgária, Armênia, Azerbaijão, aqueles lados.
Os garotos da torcida oscilavam entre o alvíssimo ao pardo.
Cabelos geralmente mais lisos, porque a Argentina tem muito poucos afro-descendentes.
Haviam brancos, alguns de pele bem clara, e loiros e ruivos como a burguesia é majoritariamente assim.
Então primeiro, nem tudo mundo no estádio é de periferia, há gente de classe-média.
Segundo, nem toda periferia é mestiça, claro que em Buenos Aires há muitos pobres caucasianos.
De pele cor-de-leite. Incluso nas favelas.
Agora, entre o povão os mestiços entre brancos e índios são maioria.
Por essa mistura, o tipo físico se parece com o dos povos que rodeiam o Mar Negro, como dito:
O portenho burguês típico é loiro ou ruivo, sempre de olhos e pele claros, como dito e é notório.
Já o bonarense médio tem cabelo preto e liso, e pele também morena, cor-de-cobre.
(Esses são os gentílicos, já que tocamos no assunto:
‘Portenho’ da Capital Federal, ‘bonarense’ da ‘Província’, do subúrbio metropolitano. Sigamos.)
A tez do bonarense (agora você já sabe o que é isso) é mais pra clara que pra escura.
Mais clara que a média do Chile e Colômbia.
E muito mais clara que a média da Bolívia e México, óbvio.
Ainda assim, resumo dessa forma:
Na Argentina, ou pelo menos em sua capital, a questão de raça é mais forte que no Brasil.
Entre os que têm renda e educação relativamente elevadas, há mestiços.
Mas os caucasianos sem mistura predominam amplamente.
Entre a massa, o povo, há muitos brancos puros, é certo.
Entretanto os mestiços ali são maioria. Tudo somado:
A Argentina é um país miscigenado, muito mais que as pessoas pensam.
É que as pessoas confundem ‘Argentina’ com a Zona Central da capital.
Mesmo seus subúrbios são mais escuros, e mais ainda interior, ressaltando mais uma vez.
A Argentina é mais clara que o Chile? Sim. Mas mais escura que o Paraguai.
E o fato que o Paraguai certamente é bem menos desenvolvido economicamente não altera em nada esse dado.
Como nunca estive no Uruguai, não posso incluir essa nação na comparação.
……….
Nas favelas de Buenos Aires, 40% dos moradores são estrangeiros.
Especialmente paraguaios e bolivianos, mas há alguns peruanos e colombianos também.
Paraguai e Bolívia têm colônias enormes de expatriados na capital argentina.
Trabalhando na construção civil e outros serviços braçais.
No estrangeiro, bolivianos e paraguaios estão numa situação difícil econômica (moram em favelas) e politicamente (geralmente ilegais).
Assim eles têm que achar um meio de conviver senão com amor pelo menos em harmonia.
E até cooperarem, pois estão no mesmo barco. Digo isso pelo seguinte:
Quando não são expatriados, quando estão cada um na sua terra-natal, bolivianos e paraguaios geralmente se odeiam encarniçadamente.
Conhecido no Paraguai como “a Guerra Total”, o embate terminou com vitória paraguaia.
O estádio Defensores do Chaco tem esse nome por causa do conflito.
Alias ele participou do esforço de guerra:
Virou paiol de munição enquanto duraram as hostilidades.
A guerra foi sinistra, dois países muito pobres e que já tinham sido destroçados em guerras anteriores.
Eles se combateram em condições extremamente hostis.
O Chaco é desértico. Os soldados marchavam por horas sob sol escaldante, as vezes descalços.
Epidemias, fome e sede mataram mais combatentes que as balas inimigas.
O Paraguai venceu a guerra, manteve ¾ do Chaco, a Bolívia ficou com ¼ como apaziguamento.
Só que ainda não houve o perdão, de parte a parte.
Bolivianos e paraguaios tem uma antipatia mútua muito forte.
Isso quando cada um está ‘em seu quadrado’, em seu próprio país.
Quando convivem nas favelas e periferias de Buenos Aires, têm que se entender.
E se organizarem pra melhorar as condições de vidas de todos na comunidade:
Estrangeiros e argentinos pobres do interior, estão todos ali, no apuro, precisam lutar juntos.
Pois a elite argentina (como todas as elites) não se importa com os desfavorecidos pelo sistema, sejam compatriotas ou imigrantes.
Por isso nas quebradas de B. Aires paraguaios e bolivianos convivem bem, sem maiores conflitos.
Realmente a dificuldade abranda corações, sem dúvida.
Alias, já dissemos acima e é notório, o Ríver é o time da classe média-alta, o Boca do povão.
Por isso, há uma brincadeira que hoje o ‘politicamente correto’ não permite que seja dito dentro dos estádios.
Ainda assim, nas redes sociais rola, nas pichações nos muros também:
A torcida do Ríver ‘acusa’ o Boca de “ter a maior torcida da Bolívia”, referência óbvia a massa imigrante.
As vezes incluem o Paraguai também no chiste.
Então Buenos Aires ficou assim: uma cidade europeizada, mas também latino-americana.
Pegou um pouco das características de cada um desses povos.
As vezes os portenhos são rígidos como os caucasianos europeus. Quem já foi a Argentina sabe:
Em muitas oportunidades os comerciantes lá se negam a dar troco, preferem perder a venda.
No caixa eletrônico saem muitas notas de 50 Pesos (8 Reais).
Você tenta pagar uma compra de 15 Pesos com ela, o caixa (geralmente o dono do negócio) recusa, opta por deixar de faturar.
Como você só tem nota de 50, fica na mão, não podia antes nem pegar um ônibus.
(Lá não tem cobrador, tinha que ser valor exato em dinheiro, agora é no cartão.)
A solução é comprar nas lojas de chineses.
Esses nunca perdem negócio, nunca reclamam de dar troco.
Falando agora da latinidade, de um ponto negativo dela.
Assim com existe o “Jeitinho Brasileiro”, há o “Jeitinho Argentino” de se lidar com as coisas.
E funciona da mesma forma, infelizmente. O argentino é tão malandro quanto o brasileiro, é a triste realidade.
Viram o carro parado exatamente embaixo da placa de “proibido estacionar”. Essa imagem é na capital.
Em Mendonça, eu esperava o ônibus bem no Centro. Ponto lotado, várias linha passam ali.
A cada minuto, dois minutos no máximo, para um buso, sobe, desce gente.
E é difícil achar vaga pra estacionar no Centro, como sabem.
Pois bem. Uma burguesa não se fez de rogada.
Parou o carro grande e caro dela exatamente no ponto de ônibus.
Trancou, saiu com calma. Ficou uns 10 minutos numa loja.
Enquanto isso os ônibus tiveram que parar em fila dupla, os passageiros correndo risco subindo e descendo no meio da rua.
Tudo porque a madame não quis pagar estacionamento.
Ela voltou pra carrão, nem sequer olhou pras pessoas que estavam ali pra pedir desculpas, entrou e arrancou.
No México fotografei o mesmo, o ponto de ônibus ocupado por carros.
Alias no México é pior, os micros só andam de porta aberta..
…….
Seja como for. Buenos Aires tem grande população imigrante sul-americana. Pela ordem:
São muitos paraguaios, muitos bolivianos, muitos uruguaios, poucos peruanos, poucos colombianos.
Santiago do Chile, com quem Buenos Aires faz um ‘jogo de espelhos’, tem (pela ordem):
Muitos bolivianos, muitos peruanos, poucos colombianos, uruguaios e paraguaios são quase inexistentes.
Já retomamos com tudo a comparação com o Chile. Agora falemos de Buenos Aires:
Os uruguaios se concentram entre a classe-média. Mas são muitos.
Há 3 milhões de uruguaios no Uruguai mesmo.
E quase 1,5 milhão de uruguaios na Argentina.
Sim, é isso, quase um terço dos uruguaios cruzou o Prata e se assentou na nação ao lado.
A imensa maioria na Grande Buenos Aires, que é perto:
3 horas de barco e poucos minutos de avião.
A economia uruguaia decaiu muito, depois que as indústrias (principalmente frigoríficos e tecelagem) fecharam, e daí esse êxodo em massa.
A Argentina é bem maior e bem mais rica, especialmente a capital.
Então há grande oferta de trabalho pra classe-média uruguaia qualificada.
Como são países muito próximos, tanto física quanto culturalmente, muitos uruguaios optaram por se estabelecer ali.
Assim em alguns bares da Zona Central de B. Aires quando jogam Boca x Penharol ou Ríver x Nacional.
(Ou outras combinações de times das capitais, você entendeu), a torcida é quase meio-a-meio.
Entre os paraguaios que vivem na Argentina há muito povão, mas muita classe-média também.
E pelo mesmo motivo, intensa proximidade física e cultural.
Com os bolivianos é o contrário dos uruguaios.
Quase todos os bolivianos que lutam na Argentina são de periferia, são quase inexistentes na burguesia.
Essas três nacionalidades acima concentram o grosso dos estrangeiros.
Já os peruanos e colombianos de Buenos Aires, que são bem mais raros, se concentram também na periferia.
BUENOS AIRES, CIDADE DA CUMBIA –
O Chaco – na Argentina chamado ‘Pampa’ – é a “Grande Planície Central Sul-Americana”.
Pega Uruguai e Paraguai inteiros, quase toda Argentina (o Sul dela, mais frio, é a Patagônia) e o Sul da Bolívia.
E a Cumbia é a música do Chaco. Exemplificar é mais fácil que explicar. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=-shpxdvBWwQ
https://www.youtube.com/watch?v=xzSlYVa2SvA
Numa delas diz “cumbia paraguaia”, mas o ritmo é sempre igual, seja do Paraguai, Argentina ou Bolívia.
É o sertanejo deles. Digo, há uma versão um pouco mais acelerada, com mais ‘remix’, que se chama ‘cumbia villera’ no original, significa ‘cumbia de favela’ ou ‘do subúrbio’.
Ali seria o equivalente ao ‘rap’. Toda América adora ‘rap’, EUA, México, América Central, Caribe, Brasil, Chile, Venezuela, Colômbia.
Digo, quase toda América. Porque a Argentina e seus vizinhos menores (Paraguai, Uruguai, Bolívia) não gostam.
Quando eles querem uma música mais pesada, mais agressiva, a ‘cumbia villera’ é a escolha.
E quando querem mais romantismo, se sintonizam na cumbia tradicional.
Por ‘A’ ou por ‘B’, só dá cumbia.
E, bem, as favelas e subúrbios de Buenos Aires são habitados por argentinos do interior e por bolivianos e paraguaios.
Os argentinos mais humildes que incham as favelas da capital vieram a maior parte do Norte do país que é menos desenvolvido.
Ou seja, são oriundos exatamente do coração do Pampa, na fronteira com os vizinhos Paraguai e Bolívia.
E vivem lado a lado com esses estrangeiros, que vieram de regiões próximas, do outro lado das fronteiras mas a cultura é parecida.
Tudo somado: nas periferias de Buenos Aires, independente da nacionalidade, quase todos vieram do Chaco/Pampa.
Portanto ali só dá cumbia. Eu voltava de trem dos subúrbios metropolitanos, ouvindo rádio.
É impressionante a quantia de estações dedicadas a cumbia.
Uma hora a cantora mandou ‘um beijo a todos um cumbeiros’.
Ela foi específica, dedicou a música a todos os fãs da cumbia na:
“Bolívia, Argentina, Brasil (São Paulo tem uma grande comunidade boliviana) e Chile”.
O Paraguai também adora cumbia. Ela não citou esse país porque é boliviana, o ressentimento ainda fala mais alto.
E ao meu lado vinha um boliviano (ele mesmo se identificou assim, não estou chutando).
Contava sua saga na Argentina, as dificuldades que passou, e sua luta pra vencer.
Não foi o único boliviano que me deparei na cidade.
No primeiro dia que cheguei fui ao jogo São Lourenço x CAP, repetindo.
Tentei recarregar o cartão de ônibus, andando num bairro bem popular, ao lado de uma grande favela.
Entrei numa vendinha. Tudo isso já contei. Agora as novidades.
A mercearia era gradeada, o cara te atendia parecendo estar num presídio, pra evitar assaltos.
E era um índio, bem escuro, logo vi que não era argentino.
Sim, a periferia de Buenos Aires é mais mestiça que a burguesia.
Mas esse garoto destoava mesmo disso. Perguntei a ele: “você é argentino?” Ele respondeu:
“Sim, nasci aqui. Mas meus pais são bolivianos, fui criado na Bolívia, agora voltei”.
Expliquei que sou jornalista, pedi permissão pra fotografar, ele assentiu.
É isso, amigos. Nos trens, subúrbios e favelas de Buenos Aires, eu me senti em La Paz, Bolívia, onde nunca estive, ou também de volta a Assunção-Paraguai, que visitei em 2013.
E dá-lhe Cumbia!!!! Se Belo Horizonte, Fortaleza-CE ou mesmo as periferias de Curitiba são as “Cidades do Funk”, Buenos Aires é a “Cidade da Cumbia”!!
…………
BUENOS AIRES & SANTIAGO: O “JOGO DOS ESPELHOS” –
As capitais da Argentina e do Chile se refletem mutuamente, mas em formas invertidas, como um Yin-Yan em 3D.
(A.S.: Por ‘Americana’ me refiro sempre ao continente América, o que vem dos EUA é ‘ianque’ ou ‘estadunidense’, lembre-se disso.)
Explico: ambas são a ‘Europa na América’, mas em dimensões diferentes.
Santiago é fisicamente uma cidade europeia, em Espírito, em cultura, é totalmente Americana.
Buenos Aires é o contrário: totalmente Americana fisicamente (por isso digo Latino-Americana), mas bem mais Europeizada em Espírito, em cultura.
A crise na Argentina está brava, e além de aguda virou também crônica.
Buenos Aires se empobreceu muito, se coalhou de favelas, e favelas horrorosas.
A capital argentina hoje tem tantas favelas quanto qualquer cidade brasileira de mesmo porte.
E, repito, as favelas deles não devem nada as nossas, em densidade, falta de infra-estrutura e serviços públicos, etc.
Buenos Aires é América. No passado não foi, mas hoje é.
E como é! Fisicamente falando, é totalmente (Latino-) Americana.
Ainda assim, em sua burguesia predomina a raça caucasiana/ normanda, brancos mesmo sem mistura.
Resultando que culturalmente (pois é a burguesia quem determina o grosso da cultura) Buenos Aires é muito europeia, em Espírito, em seu jeito de ser.
Santiago é o contrário. A capital chilena passou por uma das maiores reformas urbanas já vistas na humanidade.
Pinochet e seus sucessores literalmente refizeram a cidade.
Erradicaram e urbanizaram a maior parte das favelas.
Construíram literalmente milhões de casas novas. Não estou brincando nem exagerando.
A ênfase de re-urbanização foi só na capital Santiago.
O interior nem de longe tem o mesmo nível, exatamente ao contrário, suas periferias são cheias de favelas.
Nisso incluindo Valparaíso, que depois da ditadura se tornou capital legislativa, o Congresso foi re-aberto lá.
(Durante a era de Augusto Pinochet o Chile não teve Congresso, nem mesmo de fachada:
O ‘Generalíssimo’ dizia e estava dito, dispensava-se qualquer ratificação mesmo que simbólica.)
Da política chilena, seus conflitos do passado e do presente, já tratei com muito mais detalhes quando voltei de lá.
Aqui só fiz esse adendo pra mostrar que Valparaíso, mesmo sendo também capital, nem de longe tem o mesmo nível de Santiago.
Nem pensar….Valparaíso é coalhada de favelas em morro. ‘Valpo’ é América de Corpo & Alma.
A questão é que Santiago, fisicamente, é europeia. Urbanisticamente falando, Santiago é uma cidade britânica.
A periferia santiaguina é formada quase que somente por conjuntinhos de casas geminadas, sejam térreas ou sobrados.
Na Zona Oeste há bastante predinhos de cohab, aqueles pombais baixos sem elevador.
Nas outras partes da cidade eles existem mais são bem mais raros, as casas predominam mesmo.
Sim, parece que você está na Inglaterra, Irlanda ou Escócia.
Bairro após bairro após bairro, um conjunto emenda no outro, que emenda no outro, que emenda no outro.
São raras as casas autóctones, as construídas pelo dono conforme seu gosto. Geralmente é padronizado.
Claro, na periferia rolam puxadinhos, incluso em prédios (já falo mais disso).
E as favelas em Santiago então são raríssimas. Atenção:
Não estou dizendo que não existem. Sim, há favelas em Santiago. São poucas, mas existem.
Fui na maior delas, o Morro São Cristóvão, entre as Zonas Central e Norte.
Na Extremidade da Zona Sul, vi e fotografei mais algumas.
Então, repito, há favelas em Santiago.
Quem diz que não ou nem se deu o trabalho de ir a periferia ou está mesmo mentindo abertamente.
Ainda assim são poucas, bem poucas. Santiago foi intensamente re-urbanizada.
E é agora uma cidade basicamente formada por conjuntos habitacionais, na sua classe proletária.
Fisicamente, uma cidade europeia.
A questão é que Santiago tem o povo bem mais escuro que em Buenos Aires.
Mesmo a classe-média da capital chilena é mestiça, entre brancos e índios.
E na periferia isso só aumenta. Há brancos na periferia de Santiago?
Sim. Mas são poucos. A imensa maioria dos santiaguinos suburbanos são mesclados.
São uma mistura entre euro- e amero-descendentes.
O tom de pele varia, mas o cabelo quase sempre preto e liso, e os olhos levemente puxados.
Parecido com a Colômbia? Exatamente.
Do “outro lado do morro” (os Andes) a América é diferente que do lado de cá.
Na burguesia, Buenos Aires e Santiago se parecem, é fato. Na periferia são completamente diferentes.
Completamente. Entre o povão, o Chile é um país andino.
Com isso, quero dizer que ele é mais parecido com a Colômbia, Venezuela, México, América Central e Peru que fisicamente estão longe que com a Argentina que está do lado.
(Sim, o Peru nem tão distante do Chile, mas ainda assim bem distante, especialmente do Centro físico do Chile, que é o Centro político, econômico e cultural da nação.)
Paraguai e Uruguai são satélites culturais da Argentina. Ambos esses pequenos países enxergam a Argentina e sua cultura como um guia, como um irmão maior.
Eles se parecem com ela e querem se parecer ainda mais.
O Chile não é assim. O Chile, entre sua cultura popular, não se parece com a Argentina nem almeja parecer.
Santiago, culturalmente, é América Latina pura, com tudo que isso implica.
Alias em Santiago eu vi (e fotografei) algo que só existe lá: puxadinho no prédio.
Sim, é isso. O cara mora numa cohab, segundo ou terceiro andar.
E quer aumentar a casa, fazer mais um cômodo. Não se faz de rogado:
Bota uma estacas e faz mais uma sala, ao lado da que já existia.
O puxadinho fica precariamente suspenso por colunas improvisadíssimas.
No alto do prédio, meu irmão.
Se você nunca viu isso e acha que estou brincando, confira as fotos que tirei por lá.
Isso é bem revelador da cultura de Santiago. O improviso, traço típico da América, mais anti-europeu impossível.
Por isso. Entre o povão, a massa, Santiago é América pura. Mas fisicamente é europeia.
Buenos Aires é o contrário: com tantas favelas, é totalmente América.
Mas pelo predomínio caucasiano na burguesia, uma cidade de cultura europeia, repetindo.
Eis o “jogo dos espelho”, o reflexo invertido entre essas duas metrópoles.
CONFLITOS EM LINIERS, “ZONA OESTE DE BS. AS.” –
Essa matéria concentra as fotos nas Zonas Central, Sul e Norte.
Buenos Aires não tem mesmo Zona Leste, porque essa é o Rio, digo de novo.
Mas não há fotos da Zona Oeste, exceto poucas em frente o estádio do São Lourenço.
Que ainda é na divisa com a Zona Sul.
Entretanto, eu fui a Zona Oeste. Ao coração dela.
A ausência de imagens se refere a que naquele dia minha câmera descarregou.
Em compensação, puxei pelo ‘Google Mapas’ as cenas de Forte Apache.
(Fiz colagens, qualquer um percebe facilmente a emenda.
A intenção não é enganar ninguém, mas dar uma visão mais ampla do bairro.)
Eis o lugar que Carlitos Tévez (ex-Corinthians) foi criado. O ‘Forte’ é Z/O, e como é!
Na região metropolitana, eu não estive ali, conheço só virtualmente.
Já chegamos lá. Vamos seguindo a ordem, contando meu passeio conforme o fiz.
Desci na estação final da linha ‘A’ do metrô, quase chegando ao bairro Floresta.
Na Av. Rivadávia, importantíssimo eixo que conecta o Centro a parte ocidental da metrópole.
E aí fui seguindo a Rivadávia, as vezes entrava um pouco na parte residencial do bairro.
Aí passeava umas quadras pelas paralelas de ambos os lados.
Voltava pra avenida, sempre tendo ela como eixo.
Cheguei ao populoso e importante bairro de Liniers, que é o coração da Z/O como já dito.
Ainda dentro da capital federal, é uma transição da burguesia da Zona Central pro que virá mais a frente, a periferia da região metropolitana.
Assim Liniers é, como posso dizer, o começo da periferia.
Majoritariamente de classe média-baixa, classe proletária, com algumas porções de burguesia do subúrbio.
Liniers, embora popular, não tem favelas, ao contrário de Vila Lugano ali perto, que é cercado de favelas por todo lado.
Incluindo duas favelas bem grandes – uma delas a famosa ‘Cidade Oculta.
(Tem esse nome porque foi murada na ditadura Videla pra não ‘atrapalhar’ a vista de quem passava na avenida.)
Isso é Vila Lugano, onde eu não estive. Volto a falar de Liniers, onde passei.
Segui pela Rivadávia e paralelas. A cidade começa a mudar pra periferia:
O comércio começa a ficar mais popular, você começa a ver mais povão nas ruas.
Começa a ver mais mestiços, embora claro que há também muitos brancos.
Naturalmente há muitos caucasianos na periferia de Buenos Aires, embora já não maioria como na burguesia.
Fim-de-tarde, um caos natural pelo horário de pico, as pessoas nos pontos de ônibus, trânsito pesado, outras se dirigem a estação de trem.
Em alguns pontos a Argentina parece que ainda está no meio do século 20:
Em Córdoba ficamos num hotel grande, bem no Centro, que ocupa todo um prédio bem alto.
Pois bem. A chave ainda é de metal, você deixa na portaria quando sai.
Como era no Brasil décadas atrás, mas não mais há muito.
Em toda Argentina, em boa parte do comércio ainda não se aceita cartão de débito, você acredita?
No Brasil isso parece outra galáxia.
As pessoas aqui pagam tudo no cartão, até a conta do pão na padaria que dá R$ 3 é saldada na maquininha do cartão de débito.
Então o fato que um país que tem fama de desenvolvido ainda não aceitar cartão em diversos lugares parece inacreditável.
Entretanto é assim no momento que escrevo (2018, estive lá em 2017).
Retornando a Liniers, lá eu tive mais uma ‘volta no tempo‘.
A avenida Rivadávia é paralela a linha do trem, e logo elas se encontram, passam a correr lado-a-lado.
Pois bem. As balizas que fecham os cruzamentos com a linha férrea quando a composição passa ainda são operados manualmente!
Você acredita nisso? Pois é a realidade. Fica um guardinha a postos, quando o trem apita ele vai lá e abaixa a cancela.
(Ambos os sexos têm essa ocupação, vi homens e mulheres de uniforme na função.)
É mole? Em pleno século 21, isso era pra estar automatizado faz tempo. Mas ainda haveria mais.
A Argentina vive aguda crise social, política, econômica, todas as dimensões.
O desemprego é alto, as ruas estão tomadas de camelôs mesmo na área central.
Muito mais na periferia, especialmente ali, perto de estações de trem.
Em alguns pontos era até difícil andar na calçada, nada diferente do que acontece no Brasil.
E aí o governo resolveu complicar ainda mais o que já estava bem difícil.
Na saída da estação Liniers havia uma galeria de lojas. Já na calçada, tinham umas 20 lojas.
Havia comércio de roupas populares, lanchonetes, essas coisas.
Sabe-se lá o porque, decidiam embargar o estabelecimento.
Está tudo fechado e lacrado, com os avisos de ‘interditado’.
Porém as pessoas precisam trabalhar, não podem parar.
Precisam comer, essa necessidade não pode ser suspensa.
Nem mesmo enquanto se debatem questões técnicas legislativas, se ‘atende ou não ao plano diretor’, etc.
Os antigos comerciantes do dia pra noite foram expulsos e perderam o direito de ocupar seus pontos.
(Alguns estavam a décadas ali, você nota que a construção é antiga.)
Obviamente eles passaram a protestar. Haviam diversos cartazes dizendo:
“Não somos invasores, só queremos trabalhar”, “galeria fechada. Por quê?”, e assim vai.
Mas claro que não ficou só na retórica. Repito, as pessoas têm que comer todos os dias.
Então é preciso achar um meio de atender essa necessidade.
Se uma porta se fecha, é preciso abrir outra, essa é a lei da natureza.
Os antigos comerciantes que foram despejados de suas lojas montaram agora banquinhas, e atendem na calçada.
Exatamente em frente as suas lojas que estão fechadas, pra manter o mesmo público.
Tudo ficou mais precário, não? Antes eles eram regularizados, pagavam impostos.
Agora não pagam. Um país que está em crise fiscal gravíssima.
E ainda se dar ao luxo de desperdiçar receita é bem estranho, ultrapassa as raias da burrice.
O desconforto aumentou muito, tanto pra vendedores quanto compradores, especialmente quando chove.
A higiene também caiu, onde vendem alimentos.
A circulação se tornou mais difícil. E se tudo fosse pouco, antes os comerciantes eram todos argentinos.
Agora que se formou um camelódromo, os africanos se somaram a eles.
Veja bem, eu não tenho nada contra africanos, o oposto sendo verdadeiro.
Fui a Mama-África, e amei a experiência, foi um presente que a Grande Vida (Deus) me proporcionou. Nunca fui a Europa, mas fui a África.
Isso já revela que nutro um profundo Amor pela Raça Guerreira Negra Original.
Não tenho nada contra sequer em relação aos camelôs africanos. Ao contrário.
Uma vez comprei uma aliança de um camelô senegalês no Centro de Curitiba.
Então respeito o direito deles lutarem como podem pra sobreviver.
Estou apenas descrevendo o caos que se tornou o entorno da Estação Liniers de trem.
E tudo porque alguém decidiu estupidamente embargar a galeria.
Todo esse conflito e confusão se processava exatamente em frente as lojas fechadas….
Não era mais fácil permitir o funcionamento do comércio regularizado?
Ia ser melhor pra todo mundo, comerciantes, clientes, pessoas que apenas querem passar pela calçada, e até pro governo, que iria arrecadar mais.
Podiam devolver as lojas aos antigos donos, afinal eles precisam de uma renda.
E se a legalidade se fecha são empurrados pra ilegalidade, mas continuam ali.
Aí poderiam construir mais algumas lojas, pra contemplar também os africanos recém-chegados, dar a eles a chance de também serem cidadãos de fato.
Mas não. Não elevaram os africanos ao nível de cidadãos plenos. Foram na mão oposta.
Rebaixaram os argentinos ao mesmo nível dos africanos que são imigrantes ilegais.
Agora todos são ilegais, todos são camelôs sem licença, ao lado da galeria fechada que poderia estar sendo usada.
Algumas coisas são difíceis mesmo de entender…
…….…
Olhei pra cima. No alça do viaduto estava escrito: “Buenos Aires, Zona Oeste”.
Exatamente assim, o mesmo termo que usamos no Brasil.
Por que digo isso? Porque a palavra ‘zona’, no sentido de Zona Oeste, Zona Central, etc, só existe no Brasil, Argentina, Uruguai e mais raramente Paraguai.
No Chile, Colômbia, México, República Dominicana – esses tive oportunidade de ir, mas também nos demais [Equador, Venezuela, Peru, América Central] – é diferente:
No resto da América hispânica não há a palavra ‘zona’.
Pro sul da cidade eles dizem simplesmente ‘o sul’, pro norte ‘o norte’.
Todo mundo entende que é nosso ‘Zona Sul’ e ‘Zona Norte’. O leste é o ‘Oriente’, em todos eles.
O oeste é o ‘Ocidente’ na América do Sul e Central (incluindo Caribe).
Só que no México ‘zona oeste’ eles dizem ‘o Poente’. Poético, não?
Isso nos demais países. Na Argentina (e Uruguai, as vezes também Paraguai) é igual no Brasil.
Por isso a inscrição no viaduto: “Buenos Aires, Zona Oeste”.
CRUZANDO A AUTO-PISTA: BEM-VINDO AO “VELHO-OESTE SELVAGEM” –
Liniers, como dito, é o começo da periferia, mas ainda classe-média.
Só que é o último bairro a oeste dentro do município de Buenos Aires, a ‘Capital Federal’.
Ali estão as oficinas da rede ferroviária argentina, então a cultura proletária é muito forte.
Os argentinos ainda são sindicalizados, ainda creem na literatura da ‘luta de classes’.
Então Liniers é assim. Um bairro operário em espírito, que tem um padrão de classe média-baixa em sua maioria.
Passando por baixo do viaduto da Auto-Pista General Paz entramos na região metropolitana, e mudamos também de estado.
Saímos do Distrito Federal, adentrando a Província de Buenos Aires, pros íntimos simplesmente “A Província”.
Em Buenos Aires, quando alguém usa esse termo, já está entendido que é a periferia, os subúrbios da capital.
A cidade é a mesma mas muda a unidade da federação.
Então. Saí de Liniers e da Capital Federal, entrei em Cidadela, na “Província”.
Agora você vai ver o que é Zona Oeste de verdade!
A Avenida Rivadávia continua, inclusive com mesmo nome e numeração, herda tudo que veio da capital.
Porém o perfil social começa a mudar. Em Cidadela…
(Nota: essa é a ‘municipalidad’ deles, que seria um município aqui no Brasil talvez, a divisão é diferente.
O ‘partido’ é 3 de Fevereiro, que seria um condado, como existe nos EUA e África do Sul).
Então estamos no município de Cidadela (‘Ciudadela’ no original), condado da ‘3 de Fevereiro’
(Outra nota: originalmente escrevi que o condado era ‘La Matanza’. Está errado.
O vizinho município de Ramos Mejía fica em ‘La Matanza’, mas Cidadela no 3 de Fevereiro. Corrigido).
A cidade começa a mudar, enfatizo. Surgem algumas favelas, que não existem em Liniers.
Entrei em duas delas, uma pequena ao lado de um viaduto e uma de tamanho médio.
Até o transporte coletivo muda na “Província”.
(Isso tanto linhas municipais quanto as que ligam o Centro aos subúrbios metropolitanos.).
Já nas linhas internas metropolitanas (que não entram na Capital Federal) de menor demanda o nível não é o mesmo.
Nos deparamos com veículos mais velhos, menores, 2 portas e motor na frente.
Natural, é assim no mundo todo, os ônibus novos começam nas linhas principais e vão sendo repassados pro subúrbio conforme envelhecem.
Caminho mais um pouco, passo pela Estação Cidadela de trem, entro por dentro do bairro, sigo.
Quando chego na Estação seguinte, Ramos Mejía, está anoitecendo.
Fico por ali, subo na passarela, fico vendo o trânsito engarrafado.
Observo os ônibus voltando cheios da capital, e indo pra ela vazios – claro né, todo mundo já ralou e volta pra casa.
Carros, comércio ambulante, as pessoas passam apressadas lá embaixo e atrás de mim, vários prédios altos de classe-média.
E como pano de fundo o sol se pondo, o céu mudando de cor, as luzes na rua começam a se destacar….
Fico ali uns minutinhos, parado, sozinho, quase que em meditação, sendo Um com o Criador.
E agradeço a Ele pela chance de conhecer mais um país. Quase Zen.
……
Desço as escadas, é realmente uma queda de dimensão.
A Argentina está em caos, muitas obras ao mesmo tempo.
A estação de trem está em obras, muitos tapumes.
Tudo confuso, cartazes indicam onde é o embarque provisório.
Obviamente é difícil entender, ando de um lado pro outro, vou, volto, até sacar o lance.
E não é só porque eu sou turista. Os próprios locais também se atrapalham.
Uma moça, argentina, dali mesmo, me pergunta onde entra na estação.
Explico: “é o que estou tentando entender também”. Ela opina “deve ser por ali”, no fim achamos a bilheteria.
Pego o trem, volto pro Centro. Está encerrada a Saga na Zona Oeste.
Não há porque ficar circulando por ali a noite.
Especialmente quando as ruas ficam mais vazias.
Primeiro, a noite já não dá mesmo pra ver tanta coisa.
Segundo, é uma ‘zona vermelha’ da cidade, se é que me entendes. É disso que falarei agora.
…..
Não fui a parte mais ‘quente’ da Z/O. Não por medo.
De dia, eu entro em qualquer parte de qualquer cidade, em qualquer favela.
Em Buenos Aires mesmo entrei nas duas favelas mais famosas da capital argentina, no Centro e Zona Sul, as Vilas 31 e 21, respectivamente.
Na Zona Oeste não fui ao pior pedaço dela porque faltou tempo, realmente.
De dia teria ido. Mas não fui. Deixa eu contar onde é:
Na própria Cidadela, um pouco mais ao norte, está o Conjunto ‘Exército dos Andes’.
Mas todos conhecem como…o “Forte Apache”.
Onde Tévez criado, como já dito. Essa informação saiu na mídia a época.
O ‘Forte’ é um lugar cujo apenas a menção do nome já provoca arrepios a burguesia portenha.
Notam pelas fotos, tem um projeto arquitetônico singular, futurista.
Parece um ‘Blade Runner’, um ‘Mad Max’.
Torres de diferentes tamanhos, as mais altas se conectam pelo alto por passarelas.
Mas o pior está embaixo. Não há coleta de lixo regular no local.
Pela quantia de moradores, o caminhão tinha que passar todo dia, óbvio. Mas não passa. O lixo se acumula na rua.
Muitas carcaças de carros abandonados estão desovadas nas imediações.
(Bem, pilhas de lixo eu não vi pela Argentina. Mas carcaças de carro, é pela periferia inteira..
Parece que estamos nos lugares mais desgraçados da África, Sul da Ásia e América Central.
Aí de vez em quando (semanalmente? Quinzenalmente?) passa um caminhão e recolhe.
E não tem porque ser assim. O Forte não é uma favela, é um conjunto.
Digo, há uma invasão numa das faces dele. Mas não é por causa disso. O lixo na rua não é o da favela.
Pois a favela está só de um lado, e o lixo se acumula por todas as partes do Forte Apache, em todas as suas faces.
O Forte não é uma favela. Mas de tão mal-cuidado acaba parecendo uma. E um lugar perigoso, também.
Em março de 17, quando estive na Argentina, li (e fotografei) um jornal que dizia: “uma onda que cresce – sequestraram 5 pessoas em 15 dias na Capital Federal”.
Dizia a notícia que os sequestros são no bairro Liniers e imediações, esse que acabamos de descrever.
Sempre nas proximidades da Auto-Pista, pra facilitar a fuga.
E arrematava: “a polícia já sabe que a quadrilha tem sua base no conjunto Forte Apache, na Cidadela.”
Precisa dizer mais? Por isso essa parte da Zona Oeste é chamada lá de “Velho-Oeste Selvagem”. Porque é bangue-bangue.
Verdade, a violência urbana na Argentina é bem menor que no Brasil.
Mas Buenos Aires é uma cidade violenta. Menos que aqui? Sim, acabei de dizer.
Não há lá as mega-chacinas do tráfico, como em nossa pátria há aos montes.
Nas favelas e periferias de Buenos Aires matam muita gente, mas só no varejo:
Um num dia, dois no outro, na semana sequinte mais um.
10 a 20 de uma vez, só no Brasil, Colômbia, México, África do Sul, esses lugares mais ‘civilizados’.
Ainda assim, Buenos Aires está violenta. Bem mais do que era lá até duas décadas atrás. Bem mais, sem comparação possível.
Até pouco antes da virada do milênio, assaltos a mão armada aconteciam mas eram raros.
Latrocínios (matar pra roubar) praticamente inexistente, um a cada muitos meses no máximo.
Agora a chapa tá quente de verdade. O ‘paco’ chegou com tudo.
(Trata-se de uma droga pior que o craque, existe também em Brasília-DF e na Amazônia com o nome de merla)
Destroçando as favelas e periferias. Fez um arregaço.
Não 2 dígitos de uma vez só como no Brasil.
Ainda assim, as favelas e quebradas portenhas (Capital Federal) e bonarenses (Província) também estão desovando cadáveres em ritmo alto.
Hoje não é mais seguro andar a pé a noite no Centro e bairros ricos, como um dia foi.
E os latrocínios se tornaram corriqueiros, não comovem mais, exceto a família da vítima.
Buenos Aires mudou muito. Uma pena. Mas é a realidade deles agora, que conhecemos bem aqui.
………..
Promessa é dívida. Por que o título, “o Número da Besta”?
No meu último dia em Buenos Aires, fui conhecer a Feirinha de Artesanato de São Telmo.
Parecida com a do Largo da Ordem em Curitiba, pra quem conhece.
Almoçamos num restaurante ‘descolado’. Comida boa, ambiente aconchegante. Mas bem caro. Por isso estava vazio.
E….não aceita cartão, como é o padrão na Argentina. Tivemos que desembolsar uma boa quantia, e em efetivo.
Apesar da conta salgada, foi um almoço agradável, o local é todo decorado com quadros, os pratos são gostosos.
E tudo regado ao bom e velho ‘rock’n roll’.
Já na hora de ir embora (e eu estava me despedindo da cidade também, lembre-se) fui dar uma volta, ver os quadros.
Começou a tocar essa música, “Number of the Beast” do ‘Iron Maiden’. Entrei em transe.
Parece que tive um ‘despertar’, como os místicos contam. Tudo se encaixou, entende?
Foi a trilha sonora perfeita do momento. Deu um estalo em minha Alma.
Pronto, associei pela Eternidade essa música a Buenos Aires.
Sempre que volto lá (pelo ‘Google Mapas’) puxo ela como pano de fundo. A cidade e a canção agora são um e o mesmo.
Buenos Aires É o Número da Besta!
Está dito. Cada um que interprete como quiser porque fiz essa associação de maneira tão indelével.
…..
Deus proverá